segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Vai dar para esperar até 2018? - Marcos Nobre

- Valor Econômico

Renan está para Delcídio como Temer para Dilma

Sabe-se lá como, o governo Dilma conseguiu sobreviver a uma tempestade perfeita até o momento em que o ministro Teori Zavascki ordenou a prisão de Delcídio do Amaral, senador no exercício do mandato, líder do governo no Senado. Nesse mesmo dia 25 de novembro de 2015, a decisão do ministro foi referendada pela 2a. Turma do STF e confirmada em votação no Senado. A partir desse momento, o sistema político entrou em estado de pânico permanente.

A barbaridade jurídica perpetrada pelo STF com a prisão do senador abriu a caixa de Pandora das atrocidades jurisdicionais. Foi a senha e a chancela para a multiplicação das arbitrariedades em todos os níveis. E não apenas no Judiciário. Não por acaso, o acolhimento do pedido de impeachment de Dilma Rousseff por Eduardo Cunha aconteceu exatamente uma semana depois da prisão de Delcídio.

A interpretação do sistema político do episódio foi inequívoca: o governo Dilma não tinha condições de oferecer proteção a quem quer que fosse. Se mesmo parlamentares no exercício do mandato e com privilégio de foro podiam ser presos após o vazamento de uma gravação, ninguém poderia se considerar a salvo da exclusão direta e imediata do jogo. Foi quando o impeachment surgiu como tática para travar a Lava-Jato e enquadrar o Judiciário. O preço máximo que o sistema estava disposto a pagar era aquele já pago quando do processo do mensalão: circunscrição limitada, clara e prévia do círculo de mortos e feridos para que o restante pudesse se salvar.

A recente vitória de Renan Calheiros na queda de braço com o STF pode dar a ilusão de que o impeachment finalmente alcançou seu objetivo e que a Lava-Jato será travada, pelo menos no que diz respeito a quem tem privilégio de foro naquele tribunal. O contrário parece mais provável. O STF não tem força para fechar a caixa de arbitrariedades que ele próprio abriu. A última instância do Judiciário não pode desferir golpes abaixo da cintura constitucional e manter ao mesmo tempo a posição de árbitro imparcial.

A prisão de Delcídio foi o ponto de partida para a instauração de um ambiente de vale-tudo político que progressivamente nivelou as instituições por baixo. A decisão anulou a própria autoridade do STF, que tinha se posto até então na posição de poder moderador das múltiplas dimensões da crise. Um ano depois daquela prisão, tornou-se inteiramente visível a amplitude do estrago. O impeachment representou uma etapa de uma dinâmica em que a política foi progressivamente colocada à mercê da sanha vingadora das massas, em que qualquer instituição política é presumida culpada. A política é hoje embate de forças bruto e cru, sem árbitro preestabelecido e reconhecido como tal pelas partes envolvidas.

É nesse ambiente que se move com desenvoltura, por exemplo, o ministro Marco Aurélio Mello. No dia mesmo da prisão de Delcídio do Amaral, o blog de Cristiana Lôbo registrou declarações do ministro inteiramente compatíveis com sua atuação no recente caso Renan Calheiros. O ministro, que não participou da decisão da prisão de Delcídio por não fazer parte da 2a. Turma do STF, começou a preparar ali a liminar que concedeu em favor do afastamento do cargo do atual presidente do Senado. Disse Marco Aurélio sobre seu colega Teori Zavascki: "Sempre econômico nos adjetivos, foi firme na decisão; e nem precisava levar a decisão ao colegiado, aos demais colegas". Pode parecer brincadeira de gosto duvidoso, mas esse ambiente é aquele que Marco Aurélio avalia como o de "funcionamento pleno das instituições".

Se for possível estabelecer uma equação para a situação política atual, ela seria a seguinte: a ação contra Renan está para aquela contra Delcídio assim como o governo Temer está para o governo Dilma. O preço que o STF pagou por enquadrar Marco Aurélio no caso Renan foi a humilhação pública do tribunal e o fortalecimento de seu mais notório franco-atirador. Mais do que isso, cristalizou uma oposição que arrisca levar ladeira abaixo o governo Temer.

O afastamento de Dilma Rousseff funcionou segundo a lógica do antipetismo. A manobra tentada foi identificar o petismo com toda a corrupção, entregando o governo Dilma como uma espécie de troféu que deveria aplacar a fúria das massas mobilizadas pela Lava-Jato. Isso deveria permitir, em um segundo momento, promover algum tipo de anistia geral que zerasse o jogo. Acontece que todas as tentativas de implantar operações de salvamento geral fracassaram inapelavelmente. E nada indica que terão alguma chance de vingar no futuro.

O caso Renan cristaliza uma lógica binária, semelhante àquela do antipetismo, mas muito mais ampla agora. O ódio contra a política oficial é generalizado. E também irretrocedível na configuração atual. A lógica binária da disputa passou do antipetismo para o antissistema. Quem quiser sobreviver politicamente tem de se mostrar distante da política institucional. A mais recente decisão do STF o colocou na posição de cúmplice do sistema. A foto de Sérgio Moro entretido com Aécio Neves e tutti quanti provocou uma rachadura feia no seu pedestal antissistema. Se quiserem se manter no jogo, tanto o STF como a Lava-Jato terão de agir no sentido de tomar distância desses episódios recentes, colocando-se novamente como instâncias da antipolítica. Ao mesmo tempo, ao fazerem o que se espera que façam, vão apenas alimentar a instabilidade crônica da política oficial na direção do colapso do sistema.

O Brasil chegou a uma situação que, na Argentina da crise de 2001, encontrou sua formulação no "Que se vayan todos", na exigência de renúncia coletiva de todo político com mandato. Na Argentina, a crise se arrastou por quase um ano e meio, até a eleição presidencial de 2003. No Brasil não será diferente. Não há outra saída para o impasse atual senão a realização de eleições para a presidência da República e para o Congresso. O que não se sabe é se a convulsão social que está à espreita vai aceitar esperar até 2018. O sistema político parece continuar a acreditar que sim. É alta a chance de que vá errar uma vez mais.
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Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.

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