É vergonhoso que tenha sido necessário um massacre de quase cem detentos nos primeiros dias de 2017 para que autoridades judiciais voltassem a debater com seriedade e sentido de urgência o caráter medieval das prisões brasileiras.
A ministra Cármen Lúcia pediu que os presidentes dos Tribunais de Justiça informem até terça-feira (17) o número de processos penais não julgados em cada comarca e cobrou esforço concentrado nas varas criminais e de execução penal nos próximos 90 dias.
Cabe à ministra, como presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, coordenar o planejamento do Judiciário —e por isso Cármen Lúcia também insiste na realização de um censo penitenciário.
São iniciativas concretas e bem-vindas, mas a inexistência de estatísticas atualizadas revela o tamanho da indiferença do poder público. Os dados mais recentes compilados pelo Ministério da Justiça remetem a dezembro de 2014.
Segundo essas informações, havia 622 mil detentos onde cabiam 372 mil, e o índice de presos provisórios (sem condenação definitiva) ficava em torno de 40% do total, ou quase 250 mil pessoas.
Dedicar-se a resolver os casos pendentes é o mínimo que os magistrados podem fazer para diminuir a injustiça dentro das prisões. Tal compromisso, contudo, deveria ser permanente, e não uma resposta pontual a uma crise midiática.
Basta lembrar que os mutirões do CNJ, impulsionados sobretudo na gestão do ministro Gilmar Mendes, levaram à soltura de dezenas de milhares de pessoas que não deveriam estar atrás das grades.
Não se imagine, porém, que o esforço de agora mudará o panorama. O problema é estrutural, como atesta a existência de mais de 500 mil mandados de prisão não cumpridos no país. A pressão ocasionada pelo encarceramento em massa seria ainda maior se o aparato punitivo fosse mais eficiente.
Além disso, é inadmissível que se continue ignorando o horror dentro das casas de detenção. São frequentes os relatos de maus-tratos, para nada dizer das condições abjetas em que vivem os presos.
Afirmar que tais ambientes putrefatos servem à ressocialização não passa de ingenuidade ou cinismo. A situação só piora com a expansão das facções criminosas que comandam as penitenciárias.
Aproveitando-se do descaso do Estado, essas quadrilhas arregimentamos milhares de detentos que são lançados às masmorras. A um só tempo engrossam fileiras e aniquilam o que pudesse haver de esperança no aspecto correcional.
Sabe-se o que fazem com esse exército. Ampliam seu domínio dentro das prisões e, fora delas, disputam o controle do tráfico de drogas, seu negócio mais lucrativo e fonte principal de sustento.
Numa ironia macabra, é cada vez maior o número de indivíduos sem antecedentes criminais nem laços aparentes com facções criminosas que terminam atrás das grades por força da Lei de Drogas, como relata reportagem desta Folha.
Diante desse ciclo vicioso, o país precisa tomar uma decisão. Se insistir no encarceramento em massa e na guerra às drogas, despenderá dezenas de bilhões de reais em políticas cujo fracasso é patente aqui e mundo afora.
A alternativa pressupõe reorientação radical.
A prisão deveria ser reservada apenas a criminosos que empreguem violência ou grave ameaça; esses indivíduos precisam ser apartados da sociedade. Os demais, cuja liberdade não implica risco, podem cumprir penas alternativas, desde que suficientemente rigorosas.
Isso tornaria mais difícil que facções criminosas transformassem delinquentes de menor potencial ofensivo em soldados perigosos. Ademais, seriam gastos menos recursos para construir prisões e aplicam-se sanções que, segundo diversos estudos, convivem com índices bem mais baixos de reincidência.
Quanto às drogas, trata-se não se só de descriminalizar seu uso (eliminar ou abrandar punições ao consumidor) mas também de legalizá-las (autorizar também a produção e a venda).
Não seria um processo simples. A liberação deveria ocorrer de forma gradual e passar por consulta popular; a iniciativa precisaria receber apoio multilateral.
Justifica-se porque os trilhões de dólares que o mundo já gastou na repressão não diminuíram a demanda nem a oferta. A proibição, aliás, aproveita aos traficantes, pois encarece a droga; por outro lado, a produção e a venda, se controladas e taxadas, gerariam verbas para prevenção e tratamento.
Esta Folha há muito tempo defende essa reorientação —e hoje ela se mostra especialmente oportuna para enfrentar a crise penitenciária e sufocar as facções criminosas que se alimentam do caos.
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