• Documentos dos EUA mostram planos para perseguir opositores e líderes de direitos humanos exilados
Janaína Figueiredo | O Globo
BUENOS AIRES - A chamada Operação Condor, o sinistro plano de ação conjunta entre as ditaduras do Cone Sul, planejou, se preparou e esteve muito perto de perseguir, com o objetivo de eliminar, opositores dos regimes militares de Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Chile e Bolívia exilados na Europa. O que sempre foi uma suspeita confirmou-se, pela primeira vez, em documentos liberados pelo governo dos Estados Unidos em meados de dezembro, cumprindo à risca a promessa feita pelo presidente Barack Obama em sua visita a Buenos Aires, em março passado. Foi a segunda entrega de material sobre o último governo da ditadura argentina (1976-1983) — a primeira foi em agosto de 2016 —, enviada pela Casa Branca ao presidente Mauricio Macri e nela, segundo disse ao GLOBO Carlos Osorio, diretor do projeto de documentação do Cone Sul do Arquivo Nacional de Segurança (NSA, na sigla em inglês), “estão memorandos inéditos das agências de Inteligência americanas, que mostram, como nunca antes se viu, história, funcionamento, metas e táticas da Operação Condor”.
Uma terceira e última liberação é esperada para o final deste ano, se o presidente eleito Donald Trump não rever a medida aprovada por seu antecessor, atendendo à demanda de ONGs argentinas como as Mães e Avós da Praça de Maio.
Em agosto passado, o governo Macri recebeu cerca de mil documentos que pertenciam ao Conselho Nacional de Segurança, à Casa Branca e a agências de segurança americanas. O material de dezembro — cerca de 500 documentos — contém informação das agências de Inteligência.
— O que estamos vendo agora são as comunicações internas das agências de Inteligência, entre elas a CIA, que eram usadas para redigir os relatórios enviados ao Executivo. É algo muito valioso — comentou Osorio. — Os planos da Operação Condor na Europa nunca tinham sido confirmados desta forma tão contundente.
BRASIL FORNECEU EQUIPAMENTOS DE COMUNICAÇÃO
Num documento da CIA de 9 de maio de 1977, intitulado “O contraterrorismo no Cone Sul”, informa-se que Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai realizavam uma “troca formal de informação” sobre terroristas de esquerda e menciona que as ditaduras uruguaia, chilena e argentina pretendiam ordenar “operações ilegais” fora da América Latina, principalmente na Europa. O mesmo texto diz, ainda, que “as operações foram frustradas”, já que agências de segurança e Inteligência de países europeus e também dos EUA descobriram o plano.
— É impressionante ver a ousadia das ditaduras do Cone Sul. Se tivessem seguido adiante com a repressão em outro continente, a Europa teria virado um campo de batalha — assegurou Osorio.
O material também deixa claro quais eram os alvos da Operação Condor fora de sua região: “terroristas de primeiro nível”, incluindo dirigentes políticos e até mesmo membros de organizações de defesa dos direitos humanos, entre elas a Anistia Internacional.
A CIA obteve informações sobre um curso de treinamento realizado em Buenos Aires, especificamente para operações da Condor na Europa. A ideia, de acordo com os documentos, era enviar uma equipe de militares argentinos, uruguaios e chilenos a Londres, simulando ser homens de negócios, “para monitorar as atividades (terroristas) na Europa”. Um dos políticos mencionados é o uruguaio Wilson Ferreira, um dos principais opositores da ditadura.
— O país que corria mais risco de ser invadido por militares do Cone Sul era a França, onde se pensava que estavam alvos importantes para as ditaduras em questão — comentou o pesquisador.
O material também confirma que a participação do Brasil na Condor foi posterior a de outros países do Cone Sul. Os primeiros passos dados por Chile, Argentina, Uruguai e Paraguai começaram em 1974, mas a ditadura brasileira só aderiu ao projeto em 1976. De acordo com os documentos, o regime brasileiro foi fundamental no fornecimento de equipamentos para o setor de comunicações da Condor, chamado de Condortel.
Para a Argentina, a importância dos documentos é enorme. Juízes já aceitaram os memorandos liberados pelos EUA como prova nos tribunais. O próprio Osorio participou de alguns julgamentos como testemunha externa.
De acordo com Guadalupe Basualdo, coordenadora da área de pesquisas do Centro de Estudos Legais e Sociais (Cels), um dos casos nos quais magistrados locais já incorporaram documentação americana como prova refere-se ao sequestro e assassinato de 12 membros da organização Montoneros — braço armado da esquerda peronista — em 1980. Alguns foram sequestrados no Brasil, antes de desaparecer.
— O material foi considerado fundamental para estabelecer a verdade, demonstrando que a utilização destes documentos é uma ferramenta útil nos processos nos quais se investigam violações dos direitos humanos — disse.
Como o NSA, o Cels tem uma equipe que estuda em profundidade a documentação americana. Para Guadalupe, “a análise política e histórica destes documentos permitiu reconstruir a política externa dos EUA em relação à Argentina, entre 1976 e 1983. Foi possível reconstruir as condições nas quais as coisas aconteceram, as relações políticas e diplomáticas entre as diferentes agências, opiniões de funcionários, reuniões formais e informais”.
Os documentos do período militar contêm detalhes arrepiantes sobre as torturas. Um dos casos que mais impactaram no governo americano é o do dirigente socialista Alfredo Bravo, que sobreviveu. Bravo contou que foi torturado com choques elétricos junto com outros presos e chegou a presenciar o estupro de uma moça, na frente de seu namorado, que terminou sendo assassinado por não conseguir conter sua ira.
O que ainda falta, de acordo com o pesquisador americano, são revelações sobre como funcionavam os principais centros de tortura, entre eles a Escola de Mecânica da Marinha (Esma), por onde estima-se que passaram mais de cinco mil presos políticos e de onde saíam os voos da morte.
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