- O Estado de S. Paulo
• O homem da social-democracia numa de suas florações magníficas
Se o século 20 foi breve, começando com a conflagração de 1914 e terminando sob os escombros do Muro de Berlim ou com a dissolução da URSS, seus temas e personagens às vezes só lentamente se despedem de nós, voltando inesperadamente de um relativo esquecimento para nos assombrar com a atualidade de gestos individuais e dramas coletivos que marcaram mais de uma geração. A morte de Mário Soares, figura emblemática do Portugal moderno, propicia um desses retornos: com ela vêm à memória o país anacrônico do fascismo e as promessas da nova democracia, o colonialismo tardio e os capitães de Abril, os rumos pós-revolucionários separados entre a Europa social-democrata e a do “socialismo real”, uma fórmula defensiva que então parecia ainda capaz de emocionar corações e mentes.
Para Portugal naquele momento se dirigiram as atenções de tantos que viam na derrubada do fascismo a possibilidade de uma revolução social à moda antiga, com seu receituário testado no Leste Europeu: a nacionalização ou a estatização da economia, a afirmação inevitavelmente autoritária de um partido sobre o Estado e a sociedade, o poder assentado na aliança entre o povo e os militares progressistas, num movimento que varreria o fascismo e abriria um flanco no Ocidente univocamente regressivo e imperialista.
Essa visão de mundo, evidentemente, supunha uma lógica binária, uma confrontação aberta ou subterrânea entre “campos” contrapostos. Álvaro Cunhal, o inquebrantável dirigente comunista da resistência, fazia-se o principal intérprete dessa extremada “hipótese de Abril”. Uma hipótese ameaçadora, dado que, entre outros limites, a cultura comunista ainda se via às voltas com conceitos enrijecidos, como a ditadura do proletariado. Já nos entregando à especulação contrafactual e ao humor dos anarquistas, vitoriosa tal possibilidade, muito provável que a Pide, a temível polícia fascista, tornasse a ser aberta em seguida, só que sob nova gerência...
Mário Soares era o homem da social-democracia numa de suas florações magníficas. A dar-lhe sustentação estavam dirigentes como Willy Brandt, François Mitterrand, Olof Palme e Bruno Kreisky, para não falar da compreensão e do apoio discreto do eurocomunismo de Enrico Berlinguer. Era a garantia da construção, num horizonte temporal largo e realista, do compromisso social-democrata entre mercado e direitos, capitalismo e democracia. Nada de “comunismo agora”, especialmente na forma soviética, já intrinsecamente corroída, como setores da própria esquerda crescentemente percebiam pelo menos desde a denúncia dos crimes de Stalin, a invasão da Hungria em 1956 e da Checoslováquia em 1968.
Os embates duríssimos com os comunistas e com a centro-direita marcaram a fisionomia política e intelectual de Mário Soares. Adversário desde sempre do fascismo e alheio ao integrismo comunista, Soares, numa frase de rara felicidade que voltou a circular por estes dias, afirmava-se um político socialista, evidentemente de esquerda, mas, antes disso, fundamentalmente um democrata. Nessa adesão irreprimível à democracia constitucional está a chave da grande arte política de Soares. Ou, para evocar termos de início do século breve, a chave da curiosa vitória, em Portugal, dos “mencheviques” sobre os “bolcheviques”, do marxismo antileninista sobre a ditadura “operária” do partido único.
Expressamo-nos metaforicamente, como está claro, uma vez ser duvidoso que a convulsão social de 1974-1975 pudesse ser caracterizada como situação revolucionária clássica, considerando a implantação minoritária da força política, o Partido Comunista, que a ela se aferrava. E, mais uma vez de modo contrafactual, um eventual Estado sovietizado que daí derivasse provavelmente teria tido a mesma sorte de seus coirmãos do Leste Europeu a partir de 1989. Nem é exato chamar de menchevique a orientação do PS português: afinal, a social-democracia europeia ocidental tem uma história própria, autônoma em relação aos nomes e às tendências da política russa de 1917.
O sentido da ação de Mário Soares, enraizada na economia social de mercado, na democracia representativa e na integração europeia, como logo adiante mostraria ser, constitui um capítulo adicional, relativamente tardio, das relações difíceis e nada lineares entre capitalismo e democracia política. Como afirma Habermas, teórico visceralmente comprometido com as liberdades, vistas em perspectiva histórica tais relações entre uma economia florescente e uma repartição mais justa de bens têm sido antes a exceção do que a regra. E, não por acidente, demandam forças de esquerda que se coloquem no terreno do constitucionalismo democrático, que têm ajudado a construir, embora contraditoriamente nem sempre o reconheçam como obra própria.
Hoje, a ação de socialistas como Mário Soares mais uma vez se encontra sob severo risco, a ponto de não poucos recordarem, como termo de comparação novamente saído do século breve, a conjuntura espinhosa dos anos 1930. Naquela altura, o fascismo e o nazismo pareciam em ascensão irresistível, fazendo recuar o liberalismo europeu. O mundo comunista, internamente congelado e precocemente incapaz de apontar um rumo positivo, marcado como estava por seu “pecado oriental”, ora se fechava sectariamente, ora se abria, nos momentos mais afortunados, para a aliança com os liberais e os socialistas, como nas chamadas frentes populares, que renovavam a capacidade de influenciar até a grande intelectualidade democrática.
De modo acidentado, os valores políticos do liberalismo então se salvaram não só por sua inegável força intrínseca, como também pela contribuição da esquerda em seu conjunto. Mais adiante, nos anos 1970, o doce e pequeno país de Mário Soares daria passos decididos no mesmo sentido. E, pensando bem, esse talvez seja o grande desafio que temos diante de nós.
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*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das 'obras' de Gramsci no Brasil.
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