O mundo, de acordo com Donald Trump, é formado por países que gostam de trapacear os Estados Unidos, muitas vezes com o beneplácito de organismos multilaterais, como a Organização Mundial do Comércio. A resposta para essa conspiração que rouba empregos dos americanos e aniquila seu parque industrial é, para o presidente americano, confrontar decisões coletivas e seguir seu próprio entendimento, mesmo que isso signifique provocar a ruína de instituições que os EUA se empenharam a construir. Essa é a essência da agenda de política comercial que o governo Trump encaminhou anteontem ao Congresso. A China é o maior alvo, mas nenhum país pode se considerar a salvo da discricionariedade americana, se essa política for executada ao pé da letra.
Não falta clareza à orientação de Trump. O documento menciona como prioridades as de que o país deve colocar a soberania nacional à frente da política de comércio, aplicar estritamente as leis americanas sobre comércio, usar todas as formas possíveis para "encorajar" outros países a abrir seus mercados a exportações americanas, prover defesa de propriedade intelectual e, por último, negociar novos e melhores acordos comerciais.
Na cartilha mercantilista de Trump, o superávit comercial é a prova de vigor de uma política que aumenta o emprego doméstico, promove o crescimento, fortalece a indústria local e expande as exportações.
A OMC nasceu em 1995 e tudo parecia ir bem até 2000, quando a China nela ingressou. A política comercial global, pelo documento, pode então ser dividida em dois períodos, AC e DC - antes e depois da China. Depois da China "o crescimento se tornou mais lento, o aumento dos empregos mais fraco em geral e houve perda líquida dos postos no setor industrial nos EUA".
O time de Trump reconhece que muitos fatores contribuiram para isso, como a crise de 2008 e o impacto da automação, mas que os dados do comércio exterior são mesmo assim "chocantes". O déficit de manufaturados americano dobrou a partir de 2000 e o de mercadorias e serviços com a China quadruplicou. Houve perda de 5 milhões de vagas na indústria do país. No período AC, de 1984 a 2000, a produção industrial aumentou 71%; no DC, só 9%. E, em estranha dedução, a renda média familiar americana ficou estagnada por 16 anos.
Para a equipe de Trump, o multilateralismo, que tem na OMC seu espírito corporificado, engloba "ampla parcela" da economia global que não joga pelas regras de mercado, cria subsídios distorcivos, rouba propriedade intelectual, manipula o câmbio, viola leis trabalhistas etc. Esses países, além disso, não usam regras transparentes e não são instados pela OMC a mudar seu comportamento, o que leva à "perda de confiança no sistema". O documento resume uma de suas preocupações vitais: "O atual sistema de comércio global foi ótimo para a China, mas não gerou os mesmos resultados para os EUA".
O multilateralismo também não estaria funcionando nos próprios acordos feitos pelos EUA, como o Nafta (com o Canadá e México), com a Coreia do Sul e não daria certo na natimorta Parceria Trans-Pacífico. Trump prefere o acordo bilateral, onde o poder da maior economia do mundo pode obter resultados mais vantajosos para si.
Ao pôr a segurança nacional como norte da política comercial, o governo Trump, além de colocar uma falsa questão, deixa claro que quer seguir seus próprios interesses e conveniências em eventuais disputas, tornando a OMC e suas regras uma dispendiosa inutilidade. É difícil discernir o que pode resultar da exótica teoria de que os EUA são uma vítima inocente do comércio internacional, quando seus setores mais dinâmicos e que sustentam o país como líder na economia mundial foram os que mais se beneficiaram com a globalização.
A política comercial é uma peça do arsenal de Trump, que se completa com taxação de importações, vantagens tributárias para trazer de volta indústrias e restrição à oferta de mão de obra, com freio na imigração. Tudo isso seguido à risca, a economia americana voltaria à primeira metade do século XIX - um mundo que não existe mais. Essa fantasia retrógrada se apoia politicamente na demagogia, com a promessa de que o isolacionismo reverterá a distribuição de renda a favor da classe média. Esse é um modelo de estagnação econômica, de preços mais altos no plano doméstico, e de guerra comercial no externo. É para onde Trump tentará levar os Estados Unidos.
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