Entre as esquisitices dos tempos atuais, tem-se observado, com crescente frequência, a defesa de algumas ideias destoantes da Constituição como se elas fossem o suprassumo do espírito democrático. É um insidioso sofisma, que tenta fazer com que opiniões pessoais prevaleçam sobre normas que estão no ápice do ordenamento jurídico.
Essa inversão de hierarquia foi vista, por exemplo, na movimentação de alguns grupos por eleições diretas no caso de o presidente Michel Temer deixar o cargo. Há na Constituição uma regra para tal situação. “Ocorrendo a vacância nos últimos dois anos do período presidencial, a eleição para ambos os cargos será feita trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional, na forma da lei”, fixa o art. 81, § 1.º da Carta Magna.
Não obstante a clareza do texto, houve quem divulgasse a ideia de que o respeito a essa disposição constitucional seria formalismo jurídico. Nessa enviesada visão das coisas, a pretensa restauração da democracia exigiria desobedecer à Constituição. Apesar do barulho que é feito por seus mentores, um postulado com esse teor tem poucas chances de sobrevivência, tendo em vista sua manifesta contradição. A Constituição é o caminho institucional para a democracia no País, e não obstáculo.
Há, no entanto, outras interpretações distorcidas da Constituição, que, mais dissimuladas em seu intento de manipulação, conseguem obter maior aceitação, como se legítimas fossem, até mesmo entre profissionais do Direito. Isso pôde ser observado nas semanas prévias à indicação, pelo presidente da República, do substituto de Rodrigo Janot na Procuradoria-Geral da República.
O presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), José Robalinho Cavalcanti, disse que o presidente Michel Temer até poderia escolher para o cargo de procurador-geral da República um nome de fora da lista tríplice elaborada por sua corporação, mas que essa seria apenas uma “possibilidade constitucional”, uma hipótese “meramente teórica”. Na feliz definição da jornalista Rosângela Bittar no jornal Valor, essa seria a expressão da “Constituição teórica”, em oposição às regras que valem de fato.
Há um problema sério quando um procurador da República trata o texto constitucional como mera hipótese retórica. Em tese, ele está admitindo que o que deve valer é a pressão corporativa, e não o que o legislador constituinte definiu. Ainda que possa parecer muito participativa a ideia de que o presidente da República deva se submeter ao resultado de uma votação feita pelos procuradores – a tal lista tríplice –, esse modo de conceber a escolha do procurador-geral da República é profundamente arbitrário, já que condiciona, sem qualquer fundamento jurídico, uma atribuição constitucional do presidente da República.
O art. 128 da Constituição, em seu parágrafo 1.º, estabelece que o procurador-geral da República, chefe do Ministério Público da União – constituído pelos Ministérios Públicos Federal, do Trabalho, Militar e do Distrito Federal e Territórios –, é “nomeado pelo presidente da República dentre integrantes da carreira, maiores de trinta e cinco anos, após a aprovação de seu nome pela maioria absoluta dos membros do Senado Federal, para mandato de dois anos, permitida a recondução”.
Não há nenhuma linha, letra ou vírgula nesse enunciado que sugira algo diferente do que ali vai escrito, isto é, que o procurador-geral da República é nomeado pelo presidente da República “dentre integrantes da carreira”, e não dentre integrantes da carreira escolhidos pela corporação. Levada ao pé da letra, a interpretação do presidente da ANPR diminuiria a discricionariedade, constitucionalmente prevista, do presidente da República, legitimado pelo voto, o que não ocorre com os procuradores.
Há ainda quem diga que a lista tríplice já é uma “tradição” e, como tal, deveria ser respeitada. Ora, privilegiar uma suposta tradição em detrimento do que determina a Constituição é justamente o oposto de qualquer Estado de Direito.
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