Compositor de ‘Senhora liberdade’ e ‘Deixa clarear’ morreu quinta-feira de complicações causadas por câncer de próstata
Marcelo Moutinho | O Globo
Fã dos duelos de pipa e dos balões que cruzavam o céu da Zona Oeste, o garoto Amendoim diariamente saía da Rua Mesquita para defender uns trocados na ponte de Realengo. O produto comercializado lhe rendera o primeiro apelido, assim como a vivência no bairro com feições ainda rurais viria a plasmar os desenhos melódicos do futuro compositor.
Em 81 anos, Wilson Moreira criou pequenas maravilhas como “Meu apelo”, “Senhora liberdade” e “Deixa clarear” (as duas últimas, parcerias com Nei Lopes), iluminando a música brasileira e aqueles que o conheceram. Nascido em 1936, Moreira foi entregador de marmita, guia de cegos, bombeiro hidráulico, carcereiro. A veia artística se manifestaria cedo.
Ainda adolescente começou a tocar tamborim na Unidos da Água Branca, escola mais tarde incorporada pela Mocidade Independente de Padre Miguel. Na Mocidade, tocou surdo e ajudou a fundar a Ala dos Compositores, tendo assinado dois sambas-enredo, em 1962 e 1963. Cinco anos depois, iria para a Portela. A essa altura, Leny Andrade já havia gravado um samba seu (“Antes assim”, em 1956).
E a carreira começava a ser pavimentada rumo ao primeiro compacto, de 1967. O encontro com Nei Lopes, seu mais constante parceiro, aconteceu em 1974. O responsável foi o também compositor Délcio Carvalho. “Vou te apresentar um cara que bota música até em bula de remédio”, disse Délcio a Nei. Ao lado do letrista, Moreira compôs pérolas como “Gostoso veneno” e “Goiabada cascão”, e lançou um par de discos que hoje integra o rol dos clássicos: “A arte negra de Wilson Moreira e Nei Lopes” (1982) e “O partido muito alto de Wilson Moreira e Nei Lopes” (1985). Na Escola de Samba Quilombo, Moreira e Nei emplacaram dois sambas-enredo: o seminal “Ao povo em forma de arte” (1978) e “Noventa anos de Abolição” (1979).
O primeiro LP solo (“Peso na balança”) viria apenas em 1986. Três anos depois, Moreira lançou “Okolofé”. A partir da música-título, homenagem a Grande Otelo, o álbum refletia a peculiar síntese feita pelo compositor, ao juntar samba de terreiro, jongo e partido-alto e uma faixa de viés rural, a autobiográfica “Canção do Carrero”. Os calangos e curimbas que Moreira ouvia quando pequeno, entre familiares do Vale do Paraíba, dialogam com o batuque do “samba de sambar”. Produzido para o mercado japonês, “Okolofé” só chegaria ao Brasil dez anos depois. Entre os dois trabalhos, o artista sofreu um AVC. Ficou imobilizado parcialmente, mas não interrompeu a carreira. O disco “Entidades I” (2002) traria outra série de grandes canções.
O último álbum seria “Wilson Moreira + Baticum”, que evoca ritmos da tradição afro-brasileira e temas do candomblé. Moreira se preparava para lançar novo disco, “Tá com medo, tabaréu”. Já não era chamado de Amendoim, e sim de Alicate, apelido que ganhou de Xangô da Mangueira pelo forte aperto de mão. Mas até a noite de quinta-feira, quando as complicações de um câncer na próstata o fizeram sucumbir, manteve acesa a doçura do menino da Vila Vintém.
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