- Valor Econômico
Caberá ao presidente conciliar discrepâncias ideológicas que o cercam no trato das políticas econômicas internas
Não se pode dizer que não tenham sido movimentados os primeiros 30 dias do novo governo. As ações foram poucas, mas sobrou retórica, e muita controvérsia, contradições, discursos desencontrados e declarações que chegaram a beirar as raias do insólito.
Ao contrário das promessas de campanha, não houve ainda avanço no que diz respeito à reforma da previdência social. Mantêm-se a promessa, um tanto confusa. Promessas também predominam na agenda da privatização.
O ministro da Infraestrutura prometeu realizar 23 leilões de privatização nos cem primeiros dias de governo. Praticamente um terço do tempo já foi perdido. Outras questões, que soam como música aos ouvidos do mercado e da classe empresarial, têm sido acenadas pelo governo, como a redução da carga tributária e a desburocratização das normas que afetam os negócios, embora nenhuma medida objetiva tenha sido efetivamente proposta.
Fato é que Bolsonaro compôs um governo que tem nuances diversas e divergentes. Contrastam as ideias tradicionalmente nacionalistas dos militares que ocupam vários gabinetes na Esplanada dos Ministérios com o pensamento liberal do núcleo da área econômica. Caberá ao presidente conciliar as discrepâncias ideológicas que o cercam no trato das políticas econômicas internas.
Na área internacional, porém, não há espaço para protagonistas que apregoam doutrinas nacionalistas em nome de uma crença "antiglobalista", baseada em falsos argumentos e soluções reacionárias. O Itamaraty foi forjado sob o princípio do pragmatismo, do multilateralismo e da não intervenção. Está vinculado politicamente ao governo, mas é um órgão que pertence fundamentalmente ao Estado brasileiro e com os demais Estados soberanos deve se relacionar, independentemente dos governos vigentes.
O discurso discriminatório e preconceituoso que tem marcado neste primeiro mês de governo as falas do ministro das Relações Exteriores em nada se encaixa na forte tradição diplomática brasileira da negociação e do diálogo. O alinhamento com governos de direita ou de esquerda é uma política canhestra, que não serve ao país.
O globalismo, diferentemente da globalização (afinada com a livre movimentação global de capital, mercadorias e mão de obra), é um conceito político a partir da ideia de que um grupo político burocrático pode ter a pretensão de dominar o mundo através de um processo centralizado de tomada de decisões. Compara-se ao que Leon Trotsky dizia quando defendia a expansão da revolução soviética para o resto do mundo. Aponta a formação de mercados unificados, como a União Europeia, como exemplo de dominação política de um grupo pequeno de burocratas sobre vários estados pretensamente soberanos. Neste sentido, o protecionismo é visto como uma arma no combate à globalização que, por sua vez, contribui para a expansão do globalismo.
A rigor, a influência do "antiglobalismo" tem se evidenciado com mais ênfase em alguns setores do governo, não sendo perceptível que está espalhada pelos quatro cantos de Brasília. Mas está aparentemente enraizada na cabeça do ministro da Educação, que comanda uma das áreas mais sensíveis da administração pública.
Ele defende uma política educacional que acabe com os "efeitos" da "ideologia globalista" ou "marxismo cultural" (seriam sinônimos). A "ideologia globalista" estaria destruindo valores tais como a família, a igreja, o Estado, pátria e escola e o ministro pretende "corrigir" isso através do sistema educacional do país.
O que se propugna, em verdade, é impor às futuras gerações modos e costumes de comportamento defasados no tempo e no espaço. É como tentar apagar todo o ganho cultural, de conhecimento, de percepção do mundo e de amadurecimento cognitivo acumulados em processo contínuo, ao longo de séculos, com a ajuda do avanço tecnológico e das novas relações de convivência sociais e econômicas. Ou seja, quase uma utopia, mas com potencial de danos incalculáveis.
Percebe-se, no entanto, que o governo Bolsonaro começa a cair na realidade do modus operandi da vida como ela é. Em contraste com o discurso "antiglobalismo", o próprio presidente tem indicado nos últimos dias uma certa preferência pelo multilateralismo. Enfatizou isso em Davos, ao defender a abertura de mercados, ao mencionar a OMC e o Mercosul, e mesmo ao dizer que "por ora, o Brasil permanece no Clube de Paris", uma declaração dúbia, sem dúvida, mas menos radical do que o "vamos sair do Clube de Paris".
Nas questões ambientais, a rigor, ainda não é possível identificar posições mais consequentes do governo Bolsonaro. A chamada bancada ruralista, que tanta força demonstrou no início de janeiro, já não grita tão alto. Não se sabe se mudou de tom apenas temporariamente, ou se o governo desistiu de vez de substituir índios por gado nas terras das reservas indígenas.
Nua e cruamente, a devastação ambiental parece fazer parte do dia-a-dia do país. É cedo para se ter a dimensão dos estragos causados pelo desastre da barragem de Brumadinho, resultado da displicência da Vale e dos governos envolvidos, como aliás já havia sido detectado há pouco mais de três anos com o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, com a participação da mesma empresa mineradora.
Calcula-se que só dentro de cinco anos o meio ambiente no entorno de Mariana terá sido recuperado, mas o que morreu está morto. Dezenove pessoas, além de centenas de perdas na fauna e na flora. Em Brumadinho, o custo humano era de quase uma centena de mortos e mais de 250 pessoas desaparecidas até ontem.
Nenhum dos dois desastres pode ter a responsabilidade imputada à administração atual, mas servem de alerta, nos primeiros trinta dias do governo Bolsonaro, para a importância do controle ambiental, o rigor da fiscalização e da punição aos infratores, com objetividade, sem a influência deletéria das teses "antiglobalistas".
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