- Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Uma linda foto de Thomas Samson, fotógrafo da AFP, publicada em vários jornais, comove. É do cacique Raoni Txukahamãe a ser abraçado pelo presidente Macron, da França, após reunião no Palácio do Eliseu. Outras lideranças indígenas brasileiras estiveram na reunião. Comove porque no cenário cinzento da pobreza de espírito e da ignorância em que estamos mergulhados, um brasileiro respeitado no mundo todo é ouvido e nos redime a todos.
Ele não fala apenas em nome dos índios do Brasil, neste momento ameaçados no essencial de sua condição humana e de sua identidade. Pois, querem privá-los de direitos reconhecidos pelo Estado desde os tempos do Brasil colônia. De quando, entre altos e baixos, já se esboçava uma consciência de identidade brasileira, que do indígena, além da cor mameluca da pele, conservava, também, a língua geral, o tupi dos índios da costa.
Identidade de mestiçagem que já nos diferençava e era temida pelos que nos queriam reduzidos a insignificantes. Coisa que ainda hoje há quem nos queira assim, como cópia de uma nação cujo modelo é a de mascadores de chicle, tomadores de refrigerantes de fórmulas secretas, filhos da cultura dos filmes de caubói.
Raoni envelheceu com altivez, desde os tempos heroicos da emergência política das nações indígenas brasileiras, há 40 anos. Estimulado pelo cantor Sting, foi quando ganhou protagonismo internacional em defesa de nossas populações nativas. Estavam elas ameaçadas de redução à condição de potenciais servos da gleba dos grandes fazendeiros que cobiçavam seus territórios ancestrais.
Raoni foi e tem sido o grande símbolo da resistência cidadã e patriótica contra a voracidade especulativa de gente inculta e incivilizada que se crê de empresários. Mas diferente da também heroica geração de empresários que criou no Brasil o capitalismo moderno, comprometido com o progresso econômico vinculado ao progresso social. Emblemáticos empresários civilizados. Muito diferentes daqueles que, dizendo-se empresários de fato não o são, reduzidos à idolatria do lucro sem medida, formados na cultura dos filmes de caubói e de gibis de privada.
Envelhecido, no justo combate pelos grandes valores da condição humana, Raoni está na Europa, provavelmente, em sua última viagem em defesa da natureza e da civilização. Ameaçadas, aqui dentro do Brasil, por gente que trai o mandato de nos defender da cobiça sem medida, da irresponsabilidade política e da falta de respeito. Que não quer nem sabe nos elevar à condição de povo criativo e produtivo, superador da pobreza material e de espírito. Que quer um país curral, não uma nação universidade.
Raoni está sendo recebido, como sempre foi, como diplomata da civilização, justamente quando a diplomacia brasileira está sendo castrada em seus valores fundamentais e em sua grande história em prol da pátria. Num momento em que o Estado brasileiro fraqueja no compromisso vital com a missão própria dos que recebem o mandato de governar e não de desgovernar como estamos vendo.
Uma cultura de botequim nos assombra. Mas brilha, no horizonte de nossas tradições e de nossas justas esperanças, o grande cacique caiapó, com os ornamentos de sua regália, com seu diadema de penas amarelas, com a majestade de seu carisma. Ele é exatamente o oposto do que é o poder, hoje, no Brasil, um poder mesquinho e pobre de significados, destituído de majestade, entregue à pobreza de espírito de pessoas que não passaram pelo vestibular do serviço desinteressado ao povo e à nação.
Nas grandes tradições de sua tribo, o cacique não é o mandão, o senhor injusto da vida e da vontade alheia. Ao contrário, nas tribos brasileiras, o cacique não é o primeiro. É o último. Na partilha da caça coletiva, o último pedaço de carne é para o cacique. Nessas tradições, ele simboliza a generosidade essencial à formação e à preservação da sociedade. Ele é o profeta, não o rei. O egoísmo é monopólio do feiticeiro, o único que recebe retribuição indevida pelos feitiços que faz, o protocapitalista estéril que nega a sociedade e o outro.
Raoni personifica a comunidade de reciprocidades e de destino de um povo. Brasileiro autêntico, assumiu as graves carências da nação e se fez diplomata dos desvalidos, exemplo e orgulho da pátria, lição e modelo, pedagogia viva da condenação de tudo que nos assola e nos reduz àquilo que não somos nem queremos ser.
Os índios brasileiros não são as figuras minúsculas de um imaginário deturpado, que não lhes reconhece a humanidade criativa. Eles falam mais de 200 línguas diferentes. E dizem a todos nós que somos uma nação pluralista, na língua mestiça, na cor da pele, na defesa do território, na diversidade democrática da esperança.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Fronteira - A Degradação do Outro nos Confins do Humano” (Contexto).
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