- Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
No campo dos direitos civis ou políticos, o presidente e seus fiéis representam a mistura de conservadorismo moral com o que Bobbio chamou de liberismo, um liberalismo estritamente econômico
O Brasil vive um momento de posições extremas. Um dos pontos de atrito é o papel do Estado. A peleja aqui seria entre a visão defendida pela Constituição de 1988, representando um estilo social democrata, e um novo modelo de cunho liberal, que seria defendido pelo atual governo, tal como definiu o ministro Paulo Guedes. O caminho da mudança passaria pela redução do tamanho do governo e pelo aumento das liberdades dos indivíduos e das famílias. Tudo parece simples nessa dicotomia, mas a realidade é mais complexa e nuançada.
Para começar a desmistificar o sentido dessa dicotomia, basta lembrar que a Constituição de 1988 é um marco na garantia das liberdades individuais e coletivas. Antes dela, nossa tradição constitucional era muito mais paternalista e contrária à autonomia dos cidadãos e da sociedade. Nesse sentido, mesmo tendo reservado um grande papel ao Estado em políticas econômicas e sociais, o novo arcabouço legal permitiu a expansão do liberalismo em termos de direitos políticos e civis.
O risco às liberdades individuais pode estar mais no novo liberalismo do que no modelo social democrata presente na Constituição. O discurso bolsonarista em nome da família, quando não da religião, coloca em risco à diversidade de posições que cada indivíduo pode assumir na esfera pública ou privada. Numa sociedade aberta, nos termos que Karl Popper definia seu liberalismo, até os comunistas - reais e imaginários - podem ter o direito de defender essa visão de mundo. Na mesma linha, se quisermos ser liberais de fato, não poderíamos nos intrometer na escolha sexual dos turistas que nos visitam.
Seguindo essa argumentação, portanto, o modelo constitucional de 1988 é mais liberal do que o novo liberalismo pregado por Bolsonaro. E se seguirmos os princípios dos liberais mais recentes das teorias da Justiça, segundo os quais é preciso garantir igualdade de oportunidades no ponto de partida (e não no ponto de chegada), aí então se constata que o bolsonarismo só quer garantir as liberdades individuais para alguns. O exemplo mais cabal desse raciocínio está na ampliação da possibilidade do uso de armas pelos cidadãos.
Se a todos for dado o direito de usar armas, a maior parte da população, composta de cidadãos pobres, ficará desarmada, enquanto os mais aquinhoados serão mais livres do que os demais para poderem se proteger. Essa desigualdade de origem só poderia ser combatida se fosse dada uma "bolsa armamento" (armas mais munição grátis ou subsidiada) para o grande contingente de pessoas sem renda suficiente para ganhar essa liberdade. Do contrário, o liberalismo de Bolsonaro produzirá o seu inverso: maior sujeição dos mais carentes frente aos mais ricos, ou às mesmas máfias e milícias locais que já os dominam.
Vale relembrar que o liberalismo moderno, inaugurado por John Locke e os federalistas americanos, só pode nascer porque Thomas Hobbes tinha defendido que cabia ao Estado garantir a segurança básica aos cidadãos para que eles pudessem ser livres em termos políticos e econômicos. Se em vez do Leviatã hobbesiano a Europa tivesse optado pelo uso irrestrito de armas, a guerra de todos contra todos teria se instaurado, e as principais instituições liberal-democratas do mundo moderno não teriam surgido e se desenvolvido.
No bolsonarismo, a defesa da liberdade estendida a todos está mais no terreno econômico do que no campo dos direitos civis ou políticos. Bolsonaro e seus fiéis, na verdade, representam mais a mistura de conservadorismo moral com aquilo que o filósofo Norberto Bobbio chamou de liberismo, isto é, um liberalismo estritamente econômico.
Existe de fato no Brasil um terreno fértil para livrar os indivíduos e as empresas das amarras do estatismo. Primeiro, por causa do excesso de normas legais e cartorialismo na sociedade brasileira. A desburocratização é uma agenda positiva, que todos os governos têm anunciado desde que o ministro Hélio Beltrão ocupou um Ministério destinado a essa tarefa, mas cujos avanços até agora foram pequenos.
Ainda nessa linha, seria importante diminuir ao máximo o acesso privilegiado de grupos econômicos aos fundos públicos, o que gerou um modelo patrimonialista e um capitalismo de compadrio que um liberalismo econômico bem dosado pode combater. Acrescentaria a isso a necessidade de aumentar a competição econômica, muitas vezes tolhida por cartéis legitimados pela ação ou inação do Estado, ou por monopólios estatais.
Mas a experiência e a literatura científica no plano internacional revelam que um liberalismo econômico puro não tem sido a regra e nem é imune de defeitos. Antes de mais nada, porque o mercado produz externalidades negativas. Ou seja, a competição pura pode favorecer o seu inverso, a concentração de poder econômico, e, ademais, gerar resultados nocivos para a própria sobrevivência saudável da economia, como no caso das disfunções ambientais ou no campo da Saúde Coletiva.
Por isso, a regulação das atividades econômicas deve servir para evitar tais efeitos colaterais e, ao mesmo tempo, garantir que a própria liberdade econômica prospere. Neste sentido, o governo Bolsonaro deveria atuar para fortalecer uma regulação econômica inteligente, e não se alcançará esse objetivo, por exemplo, enfraquecendo o Ibama - ressalte-se que o descaso com a política do meio ambiente vai nos custar ao acesso aos mercados dos países mais desenvolvidos, começando pela União Europeia, mas logo logo atingindo também nosso comércio com a China.
O sucesso do liberalismo econômico também depende da construção de capital humano e de redes de infraestrutura que procurem igualar as condições de acesso à competição. Sem cidadãos bem instruídos e com garantia do direito à saúde, não há a mínima chance de se alcançar a prosperidade econômica. Mais liberdade econômica sem informação estendida ao conjunto da população e universalização dos aprendizados básicos para os desafios do século XXI é uma proposta insustentável. Por isso, é estranho ter um governo que se diz defensor do liberalismo, mas que não tem a menor ideia, por ora, do que fazer com a educação.
O grande dilema da defesa de um liberalismo econômico mais radical no Brasil é a questão da desigualdade social. Essa é a principal marca do país. Daí que focar basicamente na competição e nas escolhas individuais dos cidadãos é uma estratégia que passa ao largo daquilo que afeta a maioria dos cidadãos brasileiros. Claro que se deve fortalecer alguns vetores liberais na economia, mas centrar-se só nisso será uma forma de ampliar os problemas sociais e de evitar a construção de um mercado consumidor amplo e estável.
O raciocínio exposto aqui não invalida o fato de que o modelo de Estado criado pela Constituição de 1988 precisa ser aperfeiçoado. Em boa medida, isso já aconteceu ao longo dos últimos trinta anos, pois foram feitas cerca de cem Emendas Constitucionais e muitas delas procuraram corrigir e melhorar a forma de intervenção estatal e a provisão dos serviços públicos. Reformas nos monopólios estatais, nas regras da administração pública, na Previdência, entre outros assuntos, já desmontaram alguns equívocos da Carta Constitucional.
Não obstante, há ainda muitas falhas e lacunas do modelo estatal que exigem reformas e aperfeiçoamentos. O modelo previdenciário brasileiro, especialmente o do setor público, é composto por uma série de distorções fiscais e do ponto de vista da igualdade entre os cidadãos, e não é mais sustentável a manutenção dessas regras. A flexibilização da administração pública, em boa medida no rastro da inconclusa reforma administrativa comandada por Bresser-Pereira, é outra área que vai exigir reformismo em prol do melhor desempenho do Estado brasileiro. A criação de um sistema tributário mais simples e justo também é uma tarefa urgente. Outras questões poderiam ser aqui citadas e no fundo elas têm em comum a necessidade de melhorar os meios governamentais e administrativos, e não os fins propostos pela Constituição de 1988.
Mais do que mais ou menos Estado, o que está em jogo é a montagem de um aparelho governamental que lute pelos principais ideais que já estavam na Carta Constitucional da redemocratização: maior igualdade de direitos, ampliação das liberdades, reforço da autonomia dos indivíduos e da sociedade civil frente ao arbítrio estatal, combate às desigualdades de diversos tipos, tolerância quanto às diversas crenças dos brasileiros e aumento da competitividade econômica do país em prol do desenvolvimento.
Pitadas de liberalismo econômico serão fundamentais para melhorar o modelo de Estado brasileiro. Mas o sucesso maior de uma empreitada reformista vai depender do reforço do liberalismo político e da participação democrática, da manutenção de políticas de garantias de direito e combate às desigualdades, além da melhoria da qualidade dos serviços públicos. Desse modo, para além da dicotomia típica desses tempos de polarização, um bom governante terá que juntar ideias e esforços de vários espectros do sistema político, gerando uma combinação bem temperada de centro-direita e centro-esquerda. Pode parecer uma heresia e certamente essa frase não vai gerar muitos "likes" nas redes sociais, porém, ela é mais condizente com o que efetivamente o Estado brasileiro precisa.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP
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