sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Entrevista / Valor Econômico -Para FHC, Bolsonaro se destaca pelo anacronismo

Ex-presidente relata em livro crise do fim de seu governo

Por César Felício | Valor Econômico

SÃO PAULO - Às vésperas de lançar o quarto e último volume de seus “Diários da Presidência”, com a síntese das gravações que realizou nos anos de 2001 e 2002, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso diz que o governo do presidente Jair Bolsonaro se destaca sobretudo pelo anacronismo. “ O Brasil está em uma guerra contra o marxismo cultural quando se sabe que hoje em dia não existe mais comunismo”, disse. Ele disse não existir “nova política”, mas apenas a política tradicional, da qual Bolsonaro não é exceção, de distribuir posições para exercitar o poder.

O ex-presidente aponta sua artilharia contra as gestões de seus dois sucessores diretos, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Para FHC, o PT no poder promoveu a corrupção da própria democracia, o que foi “devastador”.

“Criaram um sistema com a bênção do governo para extorquir empresas em troca de pagamentos para o partido. Isso aí foi uma corrupção da democracia. Não me lembro disso em outros governos”, afirmou em entrevista ao Valor.

Fernando Henrique reconheceu no livro e na conversa com a reportagem o fenômeno da politização da Justiça, mas indicou ser contra a revisão da punição a seu sucessor, que cumpre pena por corrupção em Curitiba. “Não tenho prazer em ver líder político preso, mas não tenho prazer em deslegitimar a Justiça. A Justiça condena porque tem fatos, mesmo que seja movida ideologicamente. Não posso negar que em certas circunstâncias é isso.”

No biênio final de seu governo, FHC foi um presidente permanentemente acuado, o que fica nítido na leitura do livro. Ele lidou o tempo todo com denúncias de corrupção, alimentadas por um desafeto, Antonio Carlos Magalhães (1927-2007), que foi presidente do Senado, e pelo que chama de “aliança tácita” entre o Ministério Público e a oposição.

O livro mostra que FHC cogitou em diversos momentos impor limites ao MP. Em dezembro de 2001, conversou com Gilmar Mendes (então advogado-geral da União) e Pedro Parente (então ministro da Casa Civil) sobre fazer um decreto para que a Polícia Federal só colaborasse com o Ministério Público em investigações sobre o Executivo com a concordância expressa do Ministério da Justiça. A ideia não foi concretizada.

O ex-presidente arcou, ainda, com o desgaste do que reconhece ter sido um erro grave: a falta de medidas preventivas contra a escassez de energia elétrica, o que provocou um racionamento entre maio e junho de 2001. “Como um presidente pode ter sido surpreendido? Falha minha, claro. Deveriam ter me informado, mas quem deveria me informar e não me informou estava ali porque eu escolhi. Houve imprevidência”.

Enfraquecido, FHC pouco pôde influir em favor de seu candidato à sucessão, o hoje senador José Serra (PSDB-SP). FHC diz também ter menosprezado a capacidade de Lula de forjar uma aliança para ter maioria na eleição de 2002.

A seguir, trechos da entrevista com o ex-presidente:

Valor: O quarto volume de suas memórias indica que a corrupção é o preço que a sociedade brasileira teve que pagar para viver em uma democracia de massas. É isso?

Fernando Henrique Cardoso: Não acho que eu tenha me referido em minhas gravações à corrupção, mas sim ao atraso. Não se pode ceder à corrupção. Mas o que é que o atraso? É o sistema patrimonialista, de nomeações, de cargos. É complicado enfrentar os desafios do Brasil tendo em vista que esta cabeça atrasada é parte do Brasil. Qualquer sistema de poder implica em partilhar o poder. Quando se tem sistemas autoritários, sem a imprensa em cima, acontece e nós que não ficamos sabendo. É preciso distinguir a negociação que a democracia requer da corrupção. Aqui se trata do toma-lá-dá-cá.

Valor: O toma-lá-dá-cá é realidade presente na política atual?

FHC: Tem graus maiores ou menores. O que aconteceu no Brasil foi um processo diferente. A partir de um certo momento houve a corrupção da democracia, ou seja, o apoio ao governo dependia de uma mesada, o mensalão. É um processo devastador para a democracia, além do que pode ter acontecido desde sempre, que são casos individuais de corrupção. O que não se pode evitar no poder é distribuir posições. Isto é inevitável. Ou tem isso dentro de uma tirania, ou tem isso com o controle da opinião pública. A repartição do poder faz parte do jogo da democracia. Repartir o poder, não o roubo.

Valor: O presidente Jair Bolsonaro gosta de se dizer um representante da nova política. Ele representa algo novo em que medida?

FHC: Esta coisa de nova política é ideológica, é maneira de falar. Como é que compõe ministério? Ou com partidos ou com grupos sociais. Você distribui. Este presidente tem uma retórica, que entendo até a razão, depois que a Lava-Jato demonstrou a corrupção a que se tinha chegado. Ele parece pretender as coisas da maneira mais correta possível em um determinado sentido. Agora, no outro, o de distribuição de posições, este vai sempre existir. Não digo criticamente. Não tem nova política, tem política, que pode ser mais aberta, mais transparente, ou mais fechada. Quanto mais transparente, mais grupos participam. Quem exerce o poder tem que conquistar a população, trazer a sociedade. Este governo é deficiente neste aspecto. A democracia requer não só distribuir posições, mas explicar qual é o caminho.

Valor: Mas este governo distribuiu posições?

FHC: Não estou lá, não sei até que ponto. Mas ele tem apoio de governadores, prefeitos, deputados. A dificuldade deste governo é que ele não tem maioria estável. Para cada questão há uma maioria nova. É uma maneira de governar, mais trabalhosa. Está faltando a compreensão de quais são os objetivos maiores. Os valores você sabe quais são: os anacrônicos. O Brasil está em uma guerra contra o marxismo cultural quando se sabe que hoje em dia não existe mais comunismo. Todos os países do mundo entrariam em uma economia em graus variáveis de mercado. Em nome deste objetivo, assustam a população com um fantasma. Compare com o regime militar: ali havia pessoas propondo a destruição da ordem existente para criar uma outra ordem. Agora não existe. Quem é que está propondo um tipo de organização diferente?

Valor: Em seu livro o senhor diz que no Brasil não existia direita. Quem pariu a direita no Brasil?

FHC: No meu tempo o maior problema era o atraso, era não se entender quais eram os desafios reais do Brasil. Hoje tem o começo de organização de uma direita extrema. É uma visão ideológica, além do conservadorismo, que tem correspondência internacional, não é só aqui. Antes se acusava o comunismo de subversão global, agora é a direita.

Valor: Mas quem é responsável pelo fenômeno no Brasil? A conjuntura internacional, o fracasso da política petista ou a permanência do toma-lá-dá-cá?

FHC: É um pouco de cada uma dessas coisas. É inegável que a definição ‘Nós ou eles’, veio nos governos do PT. Tudo que não era a favor do PT era contra o Brasil. Essa atitude mais agressiva, verbal pelo menos, começa com o PT. E foi assumida pelo lado contrário de forma quase similar. Por outro lado, há a revivescência do que é impropriamente chamado de ‘populismo da direita’. E por que impropriamente? Porque é um populismo que exclui. O populismo tradicional era inclusivo. Este é de exclusão. Mas se caracteriza muito mais por uma questão de valores, não aceitar diversidade. É algo muito contrário à cultura brasileira, que é a cultura da transigência. Agora tem a cultura da intransigência.

Valor: Partindo do pressuposto de que a corrupção no Brasil é um problema de raízes muito antigas, o senhor considera que o seu governo permaneceu dentro da regra ou representou uma exceção?

FHC: Não teria a pretensão de ser exceção. Lutei sempre contra a dominação oligárquica. No fim do meu governo, estava rompido com chefes locais, que eram oligarcas. Tenho uma formação democrática e venho de uma família de origem militar. Na minha cultura familiar, esta ideia de se beneficiar individualmente do poder é inaceitável. Nunca tive aspirações oligárquicas e mesmo nunca tive uma preocupação de que o meu partido fosse o dominante. Minha preocupação sempre foi ter maioria para aprovar as reformas. Não se esqueça que o PT me acusou de ser um neoliberal, como um xingamento.

Sempre fui bastante tolerante com os movimentos sociais, inclusive com o MST. Ocuparam uma fazenda minha e chamei a Justiça. Não usei a força do poder para exercer controle. Sou muito institucional, respeitava os limites do poder.

Valor: Seu livro mostra como o grupo político que dominava foi perdendo as condições de manter o poder nas eleições de 2002. Um dos detonadores deste processo foi a eleição de Aécio Neves para a presidência da Câmara, que deixou o PFL sem comando das casas legislativas e colaborou para desagregar a aliança majoritária. Por que o senhor não interveio neste processo?

FHC: Era a última eleição da Mesa no meu governo. Durante todo o tempo eu segurei o PSDB, porque achava que era preciso uma aliança mais ampla. Sabia e disse a Aécio que isso podia custar a vitória no futuro. O governo estava baseado em um tripé: PSDB, PMDB, PFL. Se quebrasse uma das pernas, complicava. Mas seria interferir demais no Congresso forçar o Aécio a não ser presidente, porque ele tinha a maioria. Mas não foi só por isso que perdemos em 2002. O exercício do poder desgasta, houve crises. Convém que haja alternância. É preciso que se aceite a derrota, desde que seja fruto de decisão popular. Você toma decisões erradas, às vezes a situação é desfavorável, tive que enfrentar quatro crises financeiras. Governei contra a maré do mundo.

Valor: A crise do racionamento de energia em 2001 o pegou de surpresa. Aquilo foi determinante para a derrota?

FHC: Não sei se determinante, mas teve peso grande. Fui surpreendido realmente. Houve muito investimento em energia elétrica. Como um presidente pode ter sido surpreendido? Falha minha, claro. Deveriam ter me informado, mas quem deveria me informar e não me informou estava ali porque eu escolhi. Houve imprevidência. A seca que tivemos em 2001 não explica tudo. Era possível ter tomado medidas antes.

Valor: O interesse em privatizar o setor elétrico, com a resistência da classe política, não produziu um impasse que ajuda a explicar isso?

FHC: A questão não foi essa. Faltou chuva, investimento e conhecimento oportuno para tomar medidas de prevenção.

Valor: Na sucessão em 2002, o senhor estava muito preocupado em isolar e inviabilizar as candidaturas de Ciro Gomes e Itamar Franco e pouca atenção dava a Lula. Por que eles preocupavam mais?

FHC: Avaliei que o Lula tinha menos chances do que eles. E também porque os que estão próximos te criam mais dificuldades. Itamar, pessoa a quem devo muito, àquela altura, como governador de Minas Gerais, atuava de maneira pouco preocupada com o país, ao declarar uma moratória que era tecnicamente inviável. Sempre tive preocupação com temperamentos não institucionais, turbulentos. Ciro é assim. Tem seu valor, sabe falar, mas é turbulento. Itamar também era. Queria dar sequência às transformações que aconteciam e talvez por isso tenha minimizado a capacidade que o Lula tinha de construir maioria. Achei que era possível ao governo fazer seu sucessor. Existe uma intriga de que apoiei o Lula contra o José Serra; não é verdade.

Valor: A relação entre o senhor e o Serra em 2002 era estranha.

FHC: Minha relação com Serra é muito próxima. O Serra foi meu aluno, meu ministro duas vezes, é meu amigo. O que era difícil era convencer o eleitorado de que ele deveria ser o presidente. Teria sido um bom presidente, mas não basta ter competência. Houve muita discussão sobre o Serra não assumir a posição do governo durante a campanha, mas compreendo, o governo estava muito desgastado.

Valor: O senhor acha que o governo Lula foi uma inflexão na história do Brasil de que maneira?

FHC: Lula representava àquela altura a reinvidicação social. As pessoas achavam que ali estava a inauguração do futuro. Lula aparecia como o novo, o líder sindical que ia à Presidência, um fato jornalístico mais interessante do que eu representei. O desgaste do PT advém do que aconteceu depois: ele representou a corrupção da própria democracia. Não quer dizer que eles não sejam democráticos, porque o PT no poder não fez estripulias autoritárias. Tem a história do hegemonismo, mudar a sociedade a partir do Estado. É equivocado. A direita está tendo esta visão impositiva também, mas o PT tinha esta visão.

Valor: O senhor tornou-se presidente no décimo ano da democracia, em 1995. E quem corrompeu a democracia foi o Lula?

FHC: Lula não. O PT. No período anterior. A corrupção não é uma característica do PT. O governo Collor foi acusado de corrupção abundantemente. Todos os governos tiveram, mas ali foi diferente. Criaram um sistema com a benção do governo para extorquir empresas em troca de pagamentos para o partido. Foi uma corrupção da democracia. Não me lembro disso em outros governos.

Valor: E no seu governo? O senhor nunca negou que houve corrupção...

FHC: Não sei. Eu não participei e nem fui conivente.

Valor: O senhor se queixa de que o Brasil vivia uma cultura da denúncia, incentivada pelo Ministério Público, pela imprensa, que gerava um clima de jacobinismo, que poderia levar à ingovernabilidade. Isso mais de uma década antes da Lava-Jato e das redes sociais. Existe esta cultura no Brasil?

FHC: Não posso afirmar assertivamente. O que aconteceu? Na Constituição de 1988 transformamos o Ministério Público quase em um poder autônomo. Antes havia uma aliança tácita entre a oposição, no caso o PT, e o MP. E denunciavam, denunciavam, era um inferno, e não tinha consequência judicial, porque não tinham consistência. Hoje é diferente. O MP encontrou base de sustentação. Não tenho prazer em ver líder político preso, mas não tenho prazer em deslegitimar a Justiça. A Justiça condena porque tem fatos, mesmo que seja movida ideologicamente. Não posso negar que em certas circunstâncias é isso. Mas não condena porque tem má vontade ideológica só. Nos EUA é assim também. Quando está no exercício do poder, reage contra. Depois entende. Quando está na vida pública, está na chuva, vai se molhar.

Valor: O senhor diz que a carreira judiciária era uma das que tinha mais interferência política. A politização da Justiça é um problema?

FHC: Na questão da Justiça, tem a lista tríplice, você escolhe um dos três para desembargador [de tribunais regionais federais]. No caso do Supremo você indica quem quer, o Senado julga. O desembargador você nomeia. Os interesses locais se apresentam com força, em alguns casos. Sempre tive o cuidado de passar para o ministro da Justiça a decisão.

Valor: Mas os ministros da Justiça de seu governo com frequência foram da cota política, como Renan Calheiros e Iris Rezende.

FHC: Quem ficou mais tempo como meu ministro da Justiça foi o Nelson Jobim (1995-1997), que foi escolha pessoal, nome meu. Os que foram políticos ficaram pouco tempo. Sempre fui favorável que houvesse carreiras nestas funções. A burocracia estatal não é ruim, ao contrário do que as pessoas pensam. Veja em relação aos militares, eu venho de família militar.

Valor: Há uma imensa mágoa de militares que estão agora no governo Bolsonaro em relação ao senhor.

FHC: Sabe por que isso? Porque acabei com a promoção automática de dois cargos. Antes, quando passava para a reserva, ganhava dois cargos. Isto caiu mal, mas acabaria de novo. Não tenho pessoalmente nenhuma reclamação em relação às Forças Armadas em meu governo. Como não tinha recursos para dar aumento de salário e nem equipamento, dava prestígio. A queixa vem de preconceitos. Sobre o pagamento de indenizações a vítimas da ação do Estado no regime militar, disse que ia fazer. A questão dos direitos humanos para mim não é retórica. Fui à Oban, botaram capuz na minha cabeça, vi gente torturada. Rubens Paiva era meu amigo, mataram ele.

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