- Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
A luta fratricida no PSL e a aprovação da reforma da Previdência marcam o fim da primeira fase do governo Bolsonaro
A briga fratricida no PSL e a provável aprovação da reforma da Previdência marcam o fim da primeira fase do governo Bolsonaro. O que virá daqui para diante será uma tentativa de reorganização dos grupos políticos e uma desaceleração da maior parte da agenda de políticas públicas dependente do Congresso, ao menos até o fim das eleições municipais. O presidente vai procurar construir uma base política e social que permita, no mínimo, uma segunda parte de mandato sem sobressaltos e, no máximo, a reeleição. Os demais vão querer se fortalecer para reduzir ainda mais a força do Executivo federal e, quem sabe, assumir o poder em 2022.
A primeira fase do governo não foi uma lua de mel tranquila, tal qual tiveram outros governantes, como FHC e Lula. Houve muitos conflitos com a classe política, com líderes estrangeiros e com setores da sociedade civil. A governabilidade também foi complicada, com o Congresso ganhando um inédito protagonismo e derrotando por algumas vezes o Executivo, inclusive em questões estratégicas. Ademais, a popularidade presidencial caiu bastante - Bolsonaro tem o pior nível entre os presidentes de primeiro mandato desde a redemocratização. Mas, mesmo com todos esses furacões, foram aprovadas medidas difíceis e cerca de um terço da população ainda o apoia.
Só que os atores políticos se preparam agora para uma nova fase, embalada pelas possíveis mudanças de posições e de poder que podem advir das eleições municipais. O primeiro a entrar nessa nova etapa do jogo foi o próprio presidente da República. A disputa no PSL sinaliza que Bolsonaro quer montar uma estrutura mais confiável e totalmente dominada por ele para o pleito de 2020, bem como para a segunda parte do mandato. Cabe lembrar que, para chegar ao poder, o bolsonarismo esteve umbilicalmente ligado a políticos tradicionais, como o laranjal da campanha está revelando.
Agora, Bolsonaro quer fazer três mudanças: livrar-se do lado “sujo” do PSL, marcar mais claramente o viés conservador de seu grupo e ter uma máquina política capaz de enfraquecer seus principais adversários.
Seguindo essa linha de raciocínio, o primeiro passo envolve afastar-se de boa parte dos aliados pesselistas, tentando criar a imagem de um “bolsonarismo purificado” em outro partido ou na recuperação do domínio do PSL. Além disso, o presidente e seus principais aliados pretendem dar uma feição ideológica mais nítida ao seu grupo, intitulado por eles de posição conservadora. Para além das crenças, está aqui em jogo um projeto que busca conquistar eleitores no campo dos valores, algo que será ainda mais estratégico caso as políticas públicas federais tenham um resultado fraco.
E a última tentativa de “aggiornamento” do bolsonarismo está em construir uma máquina política, e não só de redes sociais, para dar suporte à luta contra seus adversários atuais e os prováveis. Neste sentido, as eleições municipais são muito importantes para Bolsonaro, que quer ter soldados fiéis no comando de várias cidades brasileiras. Sem essa guarida, o presidente terá dificuldades políticas em lugares estratégicos, como o Nordeste, São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e mesmo o Sul do país, o que poderá, num primeiro momento, afetar o humor dos parlamentares e, num segundo momento, o dos eleitores em 2022.
O plano bolsonarista tem bastante lógica política, porém, não será tão fácil executá-lo. Em primeiro lugar, devido às contradições internas desse movimento. Que a liderança do PSL é clientelista e algo mais todo mundo sabe. Isso não quer dizer que os bolsonaristas “de raiz” sejam anjos da política. E com o acirramento do conflito entre os “amigos”, agora vão aparecer mais podres da família Bolsonaro e seus mais fiéis aliados. Os assessores do tipo Queiroz vão pulular pela imprensa nos próximos dias.
A luta partidária, ademais, vai passar pelo dinheiro do fundo partidário. O PSL já tem direito a centenas de milhões de reais. E quem comandará esses recursos, fundamentais para a disputa local por todo o país será o presidente do partido e seus asseclas. A saída dos bolsonaristas do partido não afetará esse aspecto. É preciso saber quem financiará o bolsonarismo no pleito municipal, quando, ao contrário de 2018, os holofotes estarão todos voltados para investigar de onde vem o dinheiro para financiar as redes sociais e outros gastos de campanha, inclusive o olhar de um TSE pressionado como nunca pelo STF.
O segundo obstáculo que se coloca à estratégia bolsonarista está na reorganização das outras forças políticas. Depois de perderem a eleição de 2018, serem chamados de velha politica e jogados na sarjeta pelos discursos do presidente, os principais partidos agora estão numa situação melhor. Antes de mais nada, porque o posicionamento contrário ao radicalismo bolsonarista congrega dois terços do eleitorado. Afora isso, os resultados das políticas federais ainda não engrenaram e isso pode aumentar a insatisfação popular - quem souber capitalizar isso ao seu favor terá grandes chances nas eleições municipais.
Olhando cada parte do espectro partidário, a esquerda provavelmente continuará forte no Nordeste e terá chances em algumas capitais importantes. Ela poderá ser ainda mais forte se for capaz de fazer alianças em colégios eleitorais estratégicos. Mas aqui entra a grande dúvida: se com um governo marcado por características tão contrárias às visões esquerdistas - quando não aos próprios valores democráticos - as esquerdas continuam batendo boca em entrevistas pela imprensa, será que eleições locais vão unificá-las?
Os partidos mais ao centro estão loucos para se descolar do bolsonarismo e aproveitar um momento em que a economia dificilmente estará a todo vapor. Cabe lembrar que o PT e outras agremiações mais centristas, como o PSDB, o DEM, o MDB e o PP terão bastante dinheiro público para fazer a campanha, afora terem já uma capilaridade grande pelas cidades do país. São mais profissionais em campanhas locais e podem se beneficiar do amadorismo e das brigas viscerais nas hostes mais conservadoras.
No fundo, estas legendas centristas e mesmo as de centro-esquerda já não sentem tanto o efeito 2013 - o grito contra o sistema partidário - e nem o bolsonarismo parece tão inovador hoje para grande parte do eleitorado. Mas isso não quer dizer que o caminho será róseo. Provavelmente o eleitorado não vai querer tanta novidade como em 2018, por conta das decepções em vários lugares, mas também não perdoará quem estiver fortemente ligado à corrupção e afins. Quem poderá se beneficiar desse cenário?
É muito cedo para dar uma resposta a esta pergunta. O que se pode dizer é que gradativamente os principais partidos do Congresso tentarão criar uma identidade própria frente ao bolsonarismo, procurando se posicionar para a eleição de 2020. A velocidade e a intensidade desse processo dependerão de três coisas. A primeira é a liderança do presidente da República nos próximos meses, especialmente o efeito de suas palavras e ações na opinião pública, no Congresso, no STF e nos atores internacionais. Quanto mais ele se isolar, mais rápido e intenso será a mudança em direção a posições contrárias ao governo, com efeitos negativos para as decisões governamentais e na implementação das políticas públicas.
O segundo aspecto diz respeito ao desempenho econômico. Se a economia não decolar, e isso passa pelos indicadores e também pelo pulso das ruas (a percepção das pessoas), os políticos vão se distanciar mais do presidente e usarão o pleito municipal como palanque contra o governo. Mas se a economia ganhar força no fim do primeiro semestre, Bolsonaro poderá no mínimo diminuir o ímpeto de seus críticos ou dividi-los. De todo modo, não se espera uma situação similar à do Plano Real ou do auge do lulismo em 2010. O quanto e de que maneira a economia poderá afetar o humor dos eleitores? Inflação baixa é bom, mas desemprego é mais potente na definição do voto.
As outras políticas públicas federais também serão objeto de debate.
No pleito municipal, temáticas como educação, saúde, transporte, moradia e segurança costumam ganhar um lugar cativo. Aparentemente há uma tentativa de substituir o frágil desempenho dessas políticas, algo que poderia ser justificado pela falta de dinheiro, por um discurso baseado em valores. Que porcentagem de eleitores trocará a falta de vaga em hospital ou de moradia por um país mais cristão e moralista?
O governo Bolsonaro II iniciou-se e há muitas perguntas de difícil resposta no presente momento. O que se sabe é que quanto mais dificuldades o presidente tiver nas eleições municipais, mais a segunda parte do mandato será complicada. Mais do que ganhar de lavada, o bolsonarismo precisará obter um tamanho eleitoral que permita uma boa defesa. E do outro lado, o crescimento dos contrários ao governo, que são de múltiplos tipos, só terá maior dimensão se conseguirem, após o pleito de 2020, fazer alianças, parcerias e projetos conjuntos de país.
Uma última observação: o maior risco do dia seguinte das eleições municipais é o bolsonarismo continuar seu discurso refratário às instituições. Daí que o equilíbrio de poderes, em sentido amplo, ainda é o melhor antídoto para atravessar as várias fases pelas quais o governo Bolsonaro deverá passar.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP
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