sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Reinaldo Azevedo: O STF escolherá entre a Constituição e a desordem

- Folha de S. Paulo

O Brasil padece de muitos males, mas nada é mais nefasto que o populismo judicial

O Supremo deu início nesta quinta (17), dada a conjuntura, a um dos julgamentos mais importantes da sua história. Decidir se o país vai ou não aplicar um dispositivo constitucional, que integra o conjunto dos direitos fundamentais e é cláusula pétrea, não deixa de ser exótico. Mas a tanto fomos levados.

Nas democracias, o direito é o sumo e o vértice do pacto civilizatório. Ninguém lerá ou ouvirá este colunista a sustentar: “Lula é inocente”. Não sei. Não sou Deus nem tenho acesso à sua consciência. Mas afirmo sem receio: “Lula foi condenado sem provas num processo viciado”.

Chega, pois, a hora da escolha a um só tempo moral e ética: prefiro correr o risco de absolver um culpado a condenar um inocente. Desdobro o pensamento: o inocente acusado só tem a seu favor a ausência de provas. Se esta passa a ser irrelevante, culpados e inocentes se igualam sob a sanha de justiceiros.

Na quarta (16), o ministro Roberto Barroso, do STF, evidenciou a que descaminhos pode se deixar conduzir um juiz. Na sua intimidade com Deltan Dallagnol, em vez de o maduro instruir o jovem destrambelhado, foi o destrambelhado que desencaminhou o maduro. Já sentenciou Antero de Quental: “A futilidade num velho desgosta-me tanto como a gravidade numa criança.” Escreveu isso aos 23.

Ao comentar o julgamento das ações que tratam da constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, que define a pena de prisão só depois do trânsito em julgado —em consonância com o inciso LVII do artigo 5º da Carta —, o doutor trocou a toga por uma touca ninja.

Disse a seguinte maravilha, depois de evidenciada a mentira de que o cumprimento da Constituição libertaria 190 mil presos, incluindo homicidas: “Os que são criminosos violentos, em muitos casos, se justificará a manutenção da prisão preventiva. Portanto, no fundo, no fundo, o que você vai favorecer são os criminosos de colarinho branco e os corruptos”.

Eis a demagogia barata a serviço do populismo rasteiro da extrema direita. Explico. O criminoso violento continuará na cadeia com base no artigo 312 do Código de Processo Penal: risco à ordem pública ou de não cumprimento da lei penal.

O mesmo pode acontecer com o criminoso do colarinho branco, ora essa! Também ele está sujeito a tal artigo, com o acréscimo do risco à ordem econômica. E se já não representar risco nenhum? Então aguardará em liberdade os recursos aos tribunais superiores se forem cabíveis.

Ocorre que o doutor atribuiu-se a missão de combater a corrupção mesmo acima da lei. Ou abaixo. Assim como a extrema direita defende a tortura contra criminosos comuns (e, no passado, contra adversários políticos), Barroso não se importa em rasgar a Carta sob o pretexto de caçar corruptos.

Essa é sua nova fachada identitária. Que importa que tal desiderato se dê ao arrepio da Constituição, ameaçando direitos de quem corrupto não é? Paladinos não dão bola para essas firulas. Já houve um tempo no Brasil em que, contra a subversão, valia tudo.

Na mesma quarta, numa altercação com o ministro Alexandre de Moraes, Barroso evidenciou a sua insatisfação com um voto do colega, que estava devidamente ancorado numa lei, que, por sua vez, está amparada pela Constituição. E tonitruou: “Acho que dinheiro público tem de ter contas prestadas” (sic).

E quem não acha? A sugestão óbvia, em sua língua troncha, era a de que qualquer voto diferente do seu implica que o colega defende o assalto aos cofres. Moraes teve de lembrar ao doutor, que levou um pito oportuno de Dias Toffoli, que um juiz impõe as consequências aos faltosos segundo dispõe a lei, não o arbítrio pessoal.

O Brasil padece, sim, de muitos males. E a corrupção é um deles. Mas nada é mais nefasto do que o populismo judicial. Pior quando atravessa o umbral das cortes superiores. Nas democracias, o devido processo legal pode combater os corruptos e preservar o Estado de Direito. Já o populismo judicial corrompe também o combate à corrupção.

A política que aí está é a consequência prática das utopias de Barrosos, Dallagnois e outras flores do mesmo pântano.

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