- O Globo
Poucos pais, no entanto, são presidentes da República
‘Bolsonaro só sai do sério se mexem com os filhos.” Quem nunca ouviu essa sentença sobre a sensibilidade do presidente? Qualquer pai pode compreendê-la. É a imposição do senso de responsabilidade disparando o ímpeto por proteger a cria. Que progenitor não se desequilibraria ante uma ameaça contra seu fruto? Tanto mais se tiver sido o pai a introduzir na vida do filho um elemento como Fabrício Queiroz. Qualquer pai pode compreender isso. Muitos se culpariam. O que poderia ser pior do que colocar um filho no caminho do vício? Nem obrigar um filho a disputar uma eleição contra a própria mãe.
Poucos pais, no entanto, são presidentes da República. Pouquíssimos, aqueles pais presidentes com cujos filhos senadores quem mexe é o Ministério Público. E raríssimos, os filhos senadores de presidente investigados a partir da relação com um velho amigo do pai, delegado pelo pai. Que progenitor presidente não se desestabilizaria ante uma ameaça contra seu descendente senador com veneno para lhe contaminar o governo? Tanto mais se a ameaça extrapolar a descoberta de uma simples lavanderia para expor uma à qual se teria associado o crime organizado. É a imposição do instinto de sobrevivência disparando o ímpeto por proteger o mandato.
A ciranda é circuito de família. Para o bem e para o mal, Bolsonaro é o clã Bolsonaro. A ciranda é circuito de família — e com alto nível de civilidade: abriga ex-mulher e parentes de ex-mulher, laranjas ou não. A ciranda é circuito de família que agrega também os amigos e os amigos dos amigos, laranjas ou não. Para o mal ou para o mal, Bolsonaro também é Queiroz. O ex-policial, amigo do pai, operava desde o gabinete do filho — que, segundo o operador amigo do pai, sabia de nada. Sabia o pai?
Lembremos: em fevereiro de 2019, em depoimento ao MP, Queiroz já confessara que havia “rachadinha” no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro; que o dinheiro amealhado por meio do esquema serviria para alimentar um caixa paralelo destinado a sustentar a ampliação informal do número de colaboradores do hoje senador; e que o chefe, o filho, não o pai, de nada sabia. Sabia o pai?
E assim ficáramos: para preservar o filho senador do amigo presidente, o amigo operador chamou o então chefe — o filho, não o pai — de parvo. Honesto, mas parvo. Imaginemos: o filho deputado estadual do então deputado federal, no pleno exercício do mandato, servido por dezenas de auxiliares informais, gente que nunca vira — e sem desconfiar, sem se questionar sobre quem pagaria aquela conta. Parvo, porém honesto. Honesto, mas cuja parvoíce talvez explicasse: quem sabe aquele pessoal militasse por amor, da mesma forma que centenas de consumidores, atraídos por sua condição de popstar, compravam chocolate em sua loja porque, claro, era sua a loja, o que justificaria ele, tendo os mesmos 50% do sócio, retirar bem mais dividendos?
Ficáramos assim, com um parvo (que entregara o gabinete ao assessor amigo do pai), mas honesto, até a novidade ofertada pelo relatório do Ministério Público Estadual: Flávio não seria parvo. Quem se depara com seu tino para o negócio imobiliário fica certo de que não é, mesmo tendo assistido ao vídeo em que pretendeu se justificar. Não é mesmo. Quem conseguiria, em cerca de um ano, vender imóveis — comprados 30% abaixo do valor que o antigo proprietário pagara — por quase 300% a mais do que havia investido?
Talvez seja tarde para o pai tomar exemplo com o capeta. Não custa, porém, recordar que Lula já era ex-presidente quando os procuradores passaram a se dedicar ao raro fenômeno empresarial em que consistia o seu Ronaldinho. Deixou o garoto valer-se de sua influência e brilhar nos negócios, mas nunca pretendeu erigir sua fortaleza político-eleitoral sobre fundações de uma família exemplo de moralidade. Lulinha podia ser —era — Lula. Lula, contudo, nunca foi Lulinha. O ex-presidente talvez aconselhasse: ganha-se tempo — reduz-se a superfície — mantendo a família em casa.
Bolsonaro é presidente, ainda em primeiro ano de mandato, nesta altura em que dúvida já não há de que havia “rachadinha” no gabinete de seu Neymar — isto agravado, com potencial de se espalhar como metástase, pelo fato de o príncipe 01, brilhante também nos negócios, produto eleitoral seu, não ter existência senão sob suas asas, o que lhe deposita, sobre a bem-sucedida carcaça de quem não transige com malfeito, o fardo político de uma malcheirosa circulação de dinheiro público vivo.
Flávio Bolsonaro é Jair Bolsonaro. Jair Bolsonaro é Flavio Bolsonaro. A ciranda é circuito de família. Se gira bem, arma-se o ciclo para uma potência. Assim foi até aqui. Se desanda, tem-se um sistema integrado de potencial intoxicante.
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