terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Míriam Leitão - A busca dos valores na noite especial

- O Globo

Não é preciso ser cristão para saber que o relato da vida de Cristo nos Evangelhos traz como mensagem fundante a paz e o desarmamento de espíritos

Paz, perdão, empatia. Inúmeras palavras são harmônicas com as ideias que Jesus Cristo demonstrou na prática na sua vida, segundo o registro dos Evangelhos e dos textos dos apóstolos. A arma não faz parte desse conjunto, ela distoa. Quando se tenta pôr numa mesma proposta Cristo e armas a dissonância é completa. Quem o faz distorce a mensagem que está no Novo Testamento. A figura fascinante de Jesus está ligada à superação de preconceitos: salvar a mulher do apedrejamento, falar com a estrangeira, perdoar, no último suspiro, quem tinha feito uma trajetória de vida oposta à dele.

Existe a fé, e existe o entendimento. A fé pertence a cada um e só a pessoa sabe de sua existência, e os que não a têm merecem o mesmo respeito. A questão é íntima, delicada. A fé é inefável, excede a todo o entendimento, como eu ouvia na minha casa paterna. O entendimento, e não a fé, é a matéria dessa coluna. Ele deve ser buscado como forma de evitar os enganos e os usos indevidos dos valores que cada pessoa carrega.

Tive uma educação protestante, como os que me conhecem sabem. Meu pai era pastor presbiteriano, então na minha casa lia-se a Bíblia com frequência e falava-se dela com intimidade. Um dos princípios caros aos herdeiros da reforma era a separação entre Igreja e Estado. Na doutrina, a mistura é vista como um terreno pantanoso. Como meu pai Uriel era, ao mesmo tempo, diretor de um colégio e o pastor da igreja em Caratinga, Minas Gerais, ele praticava no cotidiano essa separação. O colégio era absolutamente laico, como ele acreditava que deveria ser o Estado. O Estado laico era estudado nas salas de aula como um dos avanços importantes da história humana. Da mesma forma separavam-se ciência e religião.

Quando nasci, os que se definiam como protestantes no Censo eram uma ínfima minoria. Ser diferente da maioria aumentava o sentimento de que tínhamos que entender o outro. Lembro de uma brincadeira de infância com várias amigas na porta da minha casa. Passou o monsenhor e todas as meninas beijaram sua mão. Eu não. Elas explicaram que eu era diferente, não era católica. Respeitar as diferenças era ser respeitado. Hoje o IBGE reúne na categoria “evangélicos” inúmeras denominações. Em muitas delas não se reconhecem os valores defendidos no princípio daquele Movimento, nas 95 teses afixadas por Lutero na porta da igreja de Wittenberg. O cisma de 1517 marcou o fim do comércio do perdão. Ele passou a ser entendido como graça e não mercadoria pela qual se deveria pagar. Isso refletiu-se na própria Igreja Católica.

Havia também a ideia da simplicidade, da relação direta com Deus, do perdão obtido não por confissão ao sacerdote e penitência imposta por ele, mas pela oração sincera e direta. O esforço dos líderes daquela vertente do cristianismo, nascida no fim da Idade Média, era de que cada um entendesse a doutrina lendo a Bíblia e por isso o movimento protestante é parte da explicação do esforço de alfabetização da Europa. Essa ideia já estava em Jan Huss, na Boêmia, cem anos antes. Huss havia sido reitor da Universidade de Praga e era padre. Foi queimado como herege. A tese de que cada indivíduo deveria ele mesmo compreender os textos sagrados permitia o empoderamento do fiel, que não tinha mais que aceitar de forma acrítica a palavra dos sacerdotes. Nas escolas dominicais que frequentei falava-se sobre o contexto de cada trecho da Bíblia. O “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”, a propósito, sempre foi conhecer a Jesus. A leitura do capítulo 8 de João mostra que está sendo dito que Jesus é a verdade. Usar o versículo 32 como slogan político é comparar-se a Cristo. Um despropósito.

Não é preciso ser cristão, nem deixar de ser ateu ou agnóstico para entender que o relato feito da vida de Cristo nos evangelhos traz como mensagem fundante a paz e o desarmamento de espíritos. O único momento em que Jesus se enfurece é exatamente quando se depara com a mistura entre fé e comércio. Ele mostrou repulsa aos “vendilhões do templo”.

Que o Natal de cada pessoa, de cada família, seja cheio desses valores iniciais do cristianismo. Em um tempo de conflitos e divisões, em que o ódio se espalha em rede, que seja momento de pensar nesses fundamentos. Uma noite de paz. Feliz Natal.

Nenhum comentário: