Criador do termo ‘presidencialismo de coalizão’ diz que Bolsonaro frustra parte de seu eleitorado e prevê que governo não conseguirá caminhar se não resolver articulação com Congresso
Thomas Traumann | O Globo
RIO - Em 1987, quando a Constituição ainda estava sendo debatida no Congresso, o cientista político Sérgio Abranches, hoje com 70 anos, cunhou a expressão “presidencialismo de coalizão” para definir as novas relações entre o o Executivo e o Legislativo. Sem maioria no Congresso, o presidente seria forçado a compor seu governo com aliados. Essa relação complexa dominou a política até Jair Bolsonaro se eleger. “Este presidente se recusou a fazer a coalizão e se nega a se articular com os partidos. Não há possibilidade de funcionar”.
• Passados seis anos, quais foram os gatilhos das marchas de 2013?
Primeiro havia uma insatisfação generalizada com a economia, sinais de que o poder de compra da população estava comprometido. Isso criava uma insatisfação difusa. O segundo componente foram as redes sociais, a possibilidade de as pessoas saberem que existem outras tão insatisfeita quanto elas. Aí, um grupo mais organizado chamou para discutir a questão das tarifas de ônibus, e o que começou como uma coisa pontual se espalhou como um protesto generalizado porque havia gente descontente com o desemprego, outros com a política, outros com a corrupção.
Esses são movimentos de contágios, igual à Primavera Árabe (na África e Orienta Médio) ou dos Coletes Amarelos (França). É um movimento que reflui quando vai para a violência, com os Black Blocs, mas deixa nas pessoas a sensação de “foi legal ter ido para a rua. Pelo menos eles nos ouviram em algumas coisas”.
- A partir de 2013 as ruas foram tomadas pela direita. Por quê?
Depois do lacerdismo (do ex-governador Carlos Lacerda, 1914-77) não apareceu ninguém capaz de legitimar o sentimento de direita. Ele ficou no armário, enrustido, enquanto PSDB e PT dominavam o debate. Mas quando os direitistas encontram outros falando sem censura o que eles só pensavam, passamos a ver a verdadeira cara do espectro ideológico brasileiro.
• Por que uma das novidades nas manifestações recentes é a defesa da intervenção militar?
Não é saudade, é ignorância. Aquela maioria com cartazes dizendo “volta” é de gente que nunca viveu a repressão, não teve pais perseguidos e mortos. Nunca me preocupei com a demanda de volta dos militares porque é de gente que não sabe o que está falando. E os que sabem são uma minoria que não vão vingar.
• O que achou das declarações de Eduardo Bolsonaro e Paulo Guedes sobre AI-5?
As menções ao AI-5 são feitas como ameaça. Nos dois casos referiam-se aos protestos do Chile e prometiam o AI-5 se ocorresse algo assim por aqui. Por outro lado, mostra que eles têm medo das ruas.
O mais importante são as muitas transgressões à democracia que o governo vem fazendo ou estimulado seus simpatizantes a fazer, como perseguições aos que pensam diferente, ameaças a professores que dão tópicos que eles consideram “ideológicos”; aparelhamento do estado para desmontar mecanismos de fomento à cultura e às artes; censura, que chamam de “filtragem” nas concessões para áreas de pesquisa; ameaças a funcionários que querem cumprir o seu dever, no Ibama e, no ICBMBio.
O ministro da Educação promete deixar as áreas de filosofia e ciências humanas sem apoio. Há muita vingança e retaliação por parte de membros do governo contra instituições nas quais não conseguiram entrar ou progredir por mérito. São inúmeras as ameaças à liberdade de expressão e à liberdade de cátedra. A tentativa de Bolsonaro de tirar a "Folha de S. Paulo" da licitação para renovar assinaturas, os ataques à TV Globo. Estão fazendo o país escorregar para o autoritarismo. Há risco institucional e, até agora, pouca reação articulada a essas ameaças
• Por que o discurso anticorrupção é tão popular?
Somos uma sociedade muito desigual, que se urbanizou tardiamente e muito rapidamente. Nossa classe média por muito tempo era toda estatal ou trabalhava em empresas fornecedoras do setor público. Com a crise dos anos 90 e as privatizações, temos a formação aceleradíssima de uma classe média capitalista, urbana, civil, que trabalha em empresas independentes do Estado.
É uma classe média que convive com o risco da demissão, sensível à inflação e com visão de curto prazo, que produz uma memória curta também. Quer dizer, eu me lembro das minhas aflições mais presentes. As minhas aflições passadas já não lembro porque eu tenho mais com o que me preocupar. Portanto, é uma nação que se desaponta rapidamente, muda de opinião constantemente e culpa o establishment político por essa frustração recorrente.
• A antipolítica é uma regra?
Se formos pegar o período pós-militar, todos os candidatos tentaram de alguma forma se apresentar como fora do establishment: o Collor era o caçador de marajás; Fernando Henrique, o pai do Plano Real; Lula, o cara que veio da pobreza; a Dilma era a gerente e o Bolsonaro, apesar de tantos anos como deputado, também se vendeu como antipolítica.
• O senhor cunhou a expressão “presidencialismo de coalização” para definir as relações entre o Palácio do Planalto e o Congresso. Por que existe a imagem de que essas relações são sempre espúrias?
Talvez porque ela tenha sido espúria mesmo, né? Agora, a realidade é mais sofisticada do que a noção de que um bando de ladrões entrou na política para assaltar os cofres públicos.
Tem a ver com o nosso sistema institucional, que desde os militares está baseado em um governo central que arrecada tudo, manda em tudo, e em governos estaduais e municipais
dependentes demais da União. Então, o presidente é o que tem recursos para doar e os deputados e senadores são os demandantes dessas verbas. Para se reeleger, eles precisam que o governo federal atenda suas comunidades. E essa necessidade de atender os estados produz uma distorção na função do Legislativo.
O congressista deixa de se preocupar com legislação e fiscalização do Executivo e passa a ser uma espécie de despachante, de vereador federal. Por isso, a pauta do Congresso é sempre fiscal. É sempre “me dá um dinheiro aí porque meu estado está com problema”. E a pauta do governo federal é sempre uma pauta de reforma porque essa pressão fiscal é insustentável financeiramente. Então, ficamos presos a uma armadilha. Temos um problema estrutural que não se resolve exclusivamente com leis anticorrupção, é preciso preparar os estados e municípios para serem autossustentados.
• Olhando em perspectiva o cenário de 2015, com as primeiras manifestações do impeachment, o governo Dilma perdendo a maioria no Congresso, a explosão do desemprego e da inflação, o impasse político era evitável?
Só se Lula tivesse escolhido outra pessoa em 2014 e tirado a Dilma.
• Em 2018, o desemprego já afligia 13 milhões de trabalhadores, o ex-presidente Lula estava preso, houve o atentado em Juiz de Fora... A eleição do Bolsonaro era inevitável?
Para isso era preciso que o candidato do PSDB não fosse o Alckmin e o PT tivesse lançado o Haddad logo no começo. Mas a quantidade de condições necessárias para manter a polarização PSDB-PT era tamanha que provavelmente o Bolsonaro era mesmo inevitável.
• Em um artigo recente, o senhor escreveu que a desilusão dos eleitores com o poder de voto para mudar a suas vidas pode aumentar.
A minha sensação é de que os eleitores brasileiros em 2022 vão querer votar. Porque como o presidente Bolsonaro vai governar o tempo todo em confronto e isso produz uma reação negativa na sociedade em busca de alguém que os eleitores imaginem ser capazes de derrotar o Bolsonaro
• Haverá um antibolsonarismo em 2022 como houve um antipetismo em 2016 e 2018?
Sim, nossa história é de seguidores fiéis versus uma massa que rejeita esse líder.
• Já está dado que a campanha de 2022 será entre Bolsonaro e o PT?
É cedo, muito cedo. Qualquer candidato que se apresente agora será alvo de vários lados. É desgaste na certa. Antecipação de campanha nunca funciona como os candidatos querem. A conjuntura é muito dinâmica. Pode alavancar ou fazer naufragar os que se lançam afoitamente. Muita coisa pode ainda acontecer, que crie condições propícias ao surgimento de uma candidatura alternativa à polarização que elegeu Bolsonaro.
• Qual a sua avaliação dos discurso de Lula pós-soltura?
Se Lula persistir na ideia de polarizar com Bolsonaro e não conseguir afastar sua inelegibilidade, decretará a derrota de quem saia pelo PT em seu lugar. Facilitará a recandidatura de Bolsonaro. Se fizer uma campanha com o discurso que usou na saída da prisão, corre certamente o risco de perder. Lula tem condições de formar uma frente pela democracia, mais ampla. Até agora não mostrou querer assumir este papel.
Muitas lideranças políticas e intelectuais do PT continuam a atacar setores democráticos que não apoiaram o partido, principalmente no governo Dilma. Fazem como Bolsonaro. O presidente declara qualquer um que pense diferente dele como “petista”, “vermelho" ou “comunista”. Parte dos petistas trata opositores como se fossem “bolsonaristas” ou “golpistas”. Há, no entanto, lideranças importantes e mais conscientes no PT que defendem uma frente mais ampla, pela democracia. Espero que elas prevaleçam e convençam Lula.
• A que o senhor atribui a queda de popularidade do governo?
Bolsonaro prometeu uma mudança instantânea, gerou uma expectativa muito difusa e produziu frustração por causa do amálgama muito disforme do eleitorado que o elegeu. Uma parte grande queria alguém que fosse o anti-PT. Hoje esses olham o caso Flávio Bolsonaro e falam “qual é a diferença?”. Por outro lado, a situação econômica piorou. Embora a inflação tenha caído, o desemprego persistiu, portanto, a renda real continua muito baixa. E as pessoas querem um alívio imediato.
• Essa frustração ameaça o futuro do governo?
Se olharmos o modelo que organizou a política brasileira desde a Constituição de 1988, Bolsonaro precisa de uma coalizão no Congresso, uma articulação política eficiente, uma pauta substantiva que gere também mudanças de curto prazo. Ele não está cumprindo nenhuma dessas condições. Portanto, por esse modelo, o governo não vai dar certo e não vai terminar o mandato. Só que...
• ...esse modelo não existe mais.
Teve a ruptura. O presidencialismo de coalizão não está funcionando, qual é a previsão do modelo? É de que vai haver um conflito crescente entre Executivo e Legislativo, vai haver uma paralisia decisória, produzindo uma piora generalizada das condições da sociedade e o governo cai. É o que diz o modelo, mas o modelo pode não funcionar. Mas este é o governo mais frágil desde Collor do ponto de vista de sustentabilidade.
• Mas o Congresso hoje não dissipa os confrontos e leva adiante as reformas?
Tem um mito hoje no mercado financeiro sobre o poder do Congresso. Só que o protagonismo do congresso no presidencialismo tem um nome: chama-se crise política. Se o presidente não tem protagonismo significa que alguma coisa está errada. Este presidente se recusou a fazer a coalizão, se nega a se articular com os partidos e prefere falar com os congressistas individualmente. Não há possibilidade de funcionar. O presidente precisa ocupar a agenda legislativa não é só para aprovar as coisas que quer aprovar; é para evitar que sejam aprovadas coisas que possam atrapalhar o seu governo.
• Falta coordenação?
Sim, o desalinhamento das eleições deixou o Legislativo sem um partido pivô. No caso do FHC, era PSDB e PFL. Com Lula e Dilma, era PT e PMDB. Sem um pivô, a tendência é a dispersão. O Congresso ou vota pontos já consensuados, como a reforma da previdência, ou para retaliar o governo, como nas derrubadas de vetos. Esse suposto protagonismo do Congresso é efêmero. A tendência é a divisão. Caminhamos para uma paralisia do governo.
• A criação da Aliança pelo Brasil afeta essa sustentação no Congresso?
O governo não tem base governista, por escolha. O presidente decidiu ficar sem coalizão e, agora, sem partido. Está criando uma casca sem miolo com a tal Aliança, se vai virar ou não um partido, a ver, a partir das próximas eleições gerais. Sem coalizão, não se pode falar em base governista. O que Bolsonaro tem é viabilizadores, políticos do DEM e do PSDB que usam sua liderança, experiência e penetração entre os parlamentares para patrocinar reformas, que o governo não se dispôs a articular e liderar. Mesmo revistas ou até redigidas por deputados e senadores, elas vão para a conta do presidente. Afinal, nosso regime é presidencialista e não parlamentarista.
• Qual o efeito de o Bolsonaro ser o primeiro presidente com forte vinculação com as igrejas evangélicas?
A adesão das igrejas evangélicas ao Bolsonaro foi brutal. A questão é saber se a defesa da pauta de costumes basta. Porque os eleitores evangélicos também comem, trabalham, são demitidos…
• Os sinais de uma economia melhor não ajudam?
Depois de um ano de governo, as pessoas já começam a culpar o governo Bolsonaro pelo seu desconforto. Não é mais o governo do PT. E não estou falando só de percentagem do PIB, mas do que acontece realmente na vida das pessoas. A economia brasileira está parada há muito tempo. Muita capacidade ociosa. Com pouco impulso, tende a crescer, porém moderadamente. 2022 está muito longe neste sentido.
Qualquer previsão que ultrapasse 2020 é muito imprecisa, condicional a mudanças na conjuntura interna e internacional. Para o ano que vem, há dois problemas novos. O acordo, precário, vá lá, entre EUA e China, que vai fazer os chineses trocarem parte da importação de soja brasileira, por soja americana. E o imposto que o governo argentino decidiu impor sobre as exportações de trigo pode pressionar a inflação interna. Sempre haverá muita pedra no caminho desta transição global, que primeiro se manifesta como uma sucessão de crises.
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