- O Estado de S.Paulo
Os dois governos não podem deixar de levar em conta o determinismo geográfico da vizinhança
O ministro do Exterior da Argentina, Fernando Solá, visita o Brasil amanhã, no primeiro contato de alto nível depois da posse do presidente Alberto Fernández. Tudo indica que com essa visita comece a ser restabelecido o diálogo governamental direto entre os dois países, interrompido por declarações críticas do presidente Jair Bolsonaro acerca do candidato peronista antes das eleições e pelas respostas de Fernández.
Como é normal entre países vizinhos, Brasil e Argentina passaram por muitos desencontros e crises ao longo da História. Agora, volta a tensão entre Brasília e Buenos Aires, em decorrência de uma escalada retórica por divergências ideológicas entre um governo de direita, liberal na economia e conservador nos costumes, no Brasil, e um governo de centro-esquerda na Argentina.
Nas relações comerciais, as preocupações de Brasília residem nas restrições protecionistas contra produtos brasileiros e quanto ao futuro do Mercosul e do acordo com a União Europeia (UE). Recentemente, pela primeira vez uma alta autoridade do governo brasileiro, o secretário de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais, Marcos Troyjo – que está hoje em Buenos Aires dialogando diretamente –, criticou o governo argentino depois da posse de Fernández. Referindo-se a restrições ao comércio e à taxação das exportações, Troyjo disse que o Brasil está com impaciência estratégica em relação à Argentina em razão dos sinais negativos na política econômica. Quanto ao Mercosul, o secretário reiterou o interesse brasileiro na aprovação da redução da tarifa externa comum (TEC)e no avanço das negociações de acordos com o Canadá e outros países. “O Brasil não deseja andar em velocidade de comboio, onde a velocidade de todos é determinada pelo veículo mais lento”. Por isso o lado brasileiro não descarta um Mercosul flex, no qual novos acordos comerciais possam ter velocidades diferentes de liberalização em cada sócio.
O presidente Bolsonaro também se referiu criticamente à Argentina: “A gente torce para que a Argentina dê certo, mas sabemos, pelo quadro político que está lá, que eles vão ter dificuldade, pois fizeram a opção de eleger que os colocou na situação de desgraça em que se encontram”.
A retórica confrontacionista põe em risco, de um lado, o relacionamento político-diplomático e a cooperação econômico-comercial entre os dois parceiros e, de outro, o futuro do Mercosul e do acordo com a UE.
O presidente Fernández acaba de completar seu primeiro périplo europeu, visitando França, Alemanha, Itália, Vaticano e Espanha. Segundo se informa, nas conversas com os líderes europeus o tema principal foi a renegociação da dívida com o FMI. O acordo comercial com a UE deve ter sido igualmente tratado. Apesar de declarações públicas contrárias, a disposição argentina de avançar no processo de ratificação desse acordo vai ser testada quando de sua assinatura, nos próximos meses. O governo brasileiro já sinalizou que poderá avançar com os demais sócios do Mercosul se um dos países-membros não der prioridade à implementação do acordo, o que criaria um crise inédita no processo de integração regional.
Interesses mais altos dos dois países aconselham uma mudança de atitude de ambos. A crise econômica na Argentina acarretou em 2019 redução sensível (35,6%) do comércio bilateral e foi um dos motivos da queda do valor das exportações totais brasileiras, em especial pela diminuição de cerca de 25% das vendas de automóveis para o mercado argentino. As restrições cambiais impuseram medidas protecionistas no comércio exterior, que deveriam ser compreendidas pelo Brasil dentro de uma visão de colaboração recíproca de longo prazo. Pragmaticamente, o governo brasileiro poderia examinar fórmulas financeiras para tentar contorná-las e permitir a volta do fluxo normal bilateral. Por seu lado, o governo argentino não deveria bloquear a redução da TEC, proposta pelo Brasil; aceitar a entrada em vigor do acordo de comércio na medida em que os Congressos do Mercosul o ratificarem fortaleceria o bloco.
O determinismo geográfico da vizinhança é um fator que os dois governos não poderão deixar de levar em conta. O mercado brasileiro é fundamental para as exportações argentinas, que ajudarão na recuperação da economia, juntamente com políticas econômicas voltadas para a estabilização e a retomada do crescimento. Para o setor privado brasileiro o mercado argentino é importante, em especial, para a indústria automobilística e a linha branca.
As percepções distintas entre os dois países na área externa, em especial em relação à Venezuela, a Cuba e ao processo de integração hemisférica (fim da Celac e da Unasul), passam a ser fatos de menor significância quando comparados aos desafios comerciais a superar. Diferenças ideológicas não devem contaminar o relacionamento bilateral.
Como disse Saenz Peña, ao superar a grave crise no início do século passado, “tudo nos une e nada nos separa”. Que suas palavras nos sirvam agora de inspiração.
* Rubens Barbosa é presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE)
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