- Valor Econômico | Eu & Fim de Semana
Embora suspensa até que Justiça e instituições se manifestem, a ação de reintegração de posse das terras ocupadas pelos indígenas, no bairro do Jaraguá, é ato socialmente injusto
Um capítulo da relação historicamente violenta dos brancos com as populações indígenas está ocorrendo na cidade de São Paulo contra os índios do Jaraguá. Não é, propriamente, uma questão racial.
No Brasil, as relações raciais têm uma característica curiosa. Aqui, raça é a raça da vítima. Nunca a raça de quem a vitima. Nesse sentido, os que os privam do que carecem não agem como raça nem em nome de uma raça. Caso em que o branco seria de uma raça sem objetivos nem motivações raciais, ainda que possa ser racista. Não há brancos no Brasil na medida em que não há no país uma causa branca, uma causa racial.
O opressor das raças subalternas não tem cor porque a opressão não tem cor. O opressor tem interesses e ambições. Sua cor é a cor da riqueza e do poder. É inútil questioná-lo em nome do preconceito racial. Ele sempre poderá dizer que gosta de índio, que gosta de preto. Mas nunca dirá que gosta mais de si mesmo, isto é, da causa que personifica em nome da coisa que o domina e em nome da qual vive e age, a riqueza.
A cor branca se tornou a cor da dominação e da exploração e das iniquidades que delas resultam. Muitos opressores de índios e de pretos são pardos e são pretos. Oprimem em nome da brancura a que servem. Nem todo os brancos são opressores de índios, brancos e pretos. A invocação de categorias raciais para interpretar tensões antigas que se atualizam todos os dias é expressão da falta de familiaridade com as ciências sociais. E do decorrente desconhecimento do que é o Brasil e do que é a sociedade brasileira.
Conhecer o Brasil não é usar cueca verde e amarela, como fazem alguns de mentalidade tosca e de patriotismo falso. Conhecer o Brasil é reconhecer a diversidade social do país e aprender a conviver com ela, a respeitar os fundamentos históricos das diferenças que nos fazem um povo culturalmente peculiar, o que fundamenta a possibilidade de uma rica inteligência da condição humana.
Desconhecer e desrespeitar essa diversidade é manifestação de ignorância, de escolaridade insuficiente e deformada e da pobreza de espírito resultante. Aquém da civilização, por aí, nós não nos conhecemos nem nos respeitamos.
Embora suspensa até que a Justiça e as instituições se manifestem, a ação de reintegração de posse contra os guarani mbya, pelas terras por eles ocupadas no bairro do Jaraguá, é ato socialmente injusto. Em boa parte, porque ao longo da história do Brasil os índios tiveram direitos territoriais reconhecidos, cuja concepção não coincide com a que regula o direito fundiário gerado pela Lei de Terras de 1850, a concepção branca de propriedade. Trata-se de conciliar e não de opor direitos e concepções de direito. O direito do branco não pode ser maior do que o direito ancestral do índio. Se o for, será ainda expoliação colonial. Significará que a barbárie da conquista continua.
Há duas tribos guarani dentro da própria cidade de São Paulo. Essa do Jaraguá, na zona oeste, distribuída em quatro aldeias, e outra, na zona sul da cidade. Os índios paulistanos estão lá porque historicamente à procura de Maíra, a entidade mítica que vem do mar.
Aliás, Maíra é masculino, e não feminino. Na zona sul da cidade, um descendente de japoneses os abrigou em suas terras, aos quais as doou. Na zona oeste, foi o Governo do Estado que, há muito, os assentou para assegurar-lhes um lar tribal e sua sobrevivência cultural.
No despejo, estão envolvidos a Prefeitura e a empresa que pretende construir ali um conjunto habitacional do projeto Minha Casa, Minha Vida.
E a casa e a vida dos índios? Os guarani nos precederem no seu vasto território ancestral, vizinhos dos índios deste em que estamos. Tudo que eles não têm é o que nós lhes tiramos. E tudo que temos já foi deles. Está faltando alguma coisa nessa trama injusta.
O reconhecimento dos direitos das populações indígenas, como donos e gente. Está se dando precedência a direitos imobiliários em relação a direitos sociais e a direitos humanos.
Desde 1850, o anticapitalista direito de propriedade implantado no Brasil, teve por função assegurar vitalidade ao capitalismo rentista, a forma irracional de acumulação do peculiar capitalismo brasileiro, em conflito com a lógica própria do verdadeiro capitalismo. O capitalismo de verdade depende de direitos sociais e de justiça social. Caso contrário, ele se autodestrói.
Os diferentes ramos do povo guarani são dos mais antigos no contato com os brancos daqui e são também as maiores vítimas da colonização genocida que os feriu mortalmente. Os paulistas são historicamente responsáveis pela sujeição dos guarani à condição de escravos, sequestrando-os do projeto alternativo e civilizador dos jesuítas.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de "Moleque de Fábrica" (Ateliê Editorial).
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