- O Globo
O arsenal dedicado à rede de proteção social precisa aumentar
Segunda-feira à tarde, quando a equipe econômica guardava silêncio sobre medidas na área social contra a pandemia e o presidente da República soltava a voz para chamar de histeria a crise já instalada do coronavírus, Maria Isabel Monteiro, presidente do Sindicato das Trabalhadoras Domésticas do Município do Rio, gravou e distribuiu um vídeo. Em voz serena, reivindicava dos empregadores a liberação de domésticas e diaristas do trabalho, sem prejuízo na remuneração. De quebra, alertou para o risco de a pandemia alcançar a categoria, muito dependente do Sistema Único de Saúde, velho de guerra. Em 84 segundos, explicitou um conhecimento de Brasil que o governo Jair Bolsonaro em 15 meses continua devendo.
Maria Isabel compreendeu que a pandemia ameaçava a sempre cambaleante infraestrutura da saúde pública no país — não à toa, o setor está sempre no topo das preocupações da população nas pesquisas eleitorais. Sabia que a recomendação de distanciamento social e isolamento não seria cumprida, se trabalhadores não tivessem garantia de remuneração. Acabariam por escolher entre a doença e a fome. Percebera, sobretudo, que a desigualdade social e a herança escravocrata poriam em risco os corpos de sua categoria profissional, formada por 6,260 milhões de pessoas — nove entre dez, mulheres, segundo o IBGE.
Só quando os dois maiores estados iniciaram a contagem de mortos, o ministro da Economia, Paulo Guedes, apresentou o conjunto de medidas para aliviar a crise social decorrente da Covid-19. Foi na mesma terça-feira em que a Prefeitura de Miguel Pereira anunciou o primeiro óbito por coronavírus em território fluminense. A vítima, uma doméstica de 63 anos infectada pela patroa, que retornara da Itália contaminada — ontem, a Secretaria estadual de Saúde do Rio confirmou que o exame foi positivo.
Guedes pôs na mesa um necessário arsenal de até R$ 600 bilhões para estabilizar o sistema financeiro e acenou com intervenções do Tesouro Nacional, do Banco Central e com alívio de regras para os bancos médios. À população, ofertou antecipação para abril e maio do pagamento do décimo terceiro a aposentados e pensionistas do INSS, liberação do abono salarial em junho. Eram recursos já previstos no Orçamento. Em dinheiro novo, aporte de R$ 3,1 bilhões para adicionar um milhão de lares aos 13,216 milhões que receberam o Bolsa Família em fevereiro. Às empresas, ofereceu adiamento por três meses no recolhimento do FGTS e do Simples Nacional, redução à metade das contribuições ao Sistema S.
O ministro encontrou tempo para pressionar o Congresso Nacional pela aprovação das reformas do Pacto Federativo (redistribuição de recursos entre estados e municípios), do Plano Mansueto (renegociação de dívida das unidades da Federação) e da privatização da Eletrobras, sob pena de contingenciar R$ 16 bilhões do Orçamento de 2020. Concentrou as ações para brasileiros conectados ao mundo formal do trabalho e dos benefícios sociais, mas não fez solitária referência ao grupo mais exposto à vulnerabilidade social no Brasil, os trabalhadores informais. O país, nos últimos anos, se dedicou a remodelar um arcabouço de direitos sociais e serviços do Estado sob a ótica do custo, nunca dos benefícios. Proteção social e renda são variáveis a garantir confiança e consumo.
No governo Michel Temer, aprovou uma reforma que fraturou a Justiça do Trabalho, flexibilizou contratos e teve impacto modestíssimo, quase nulo na geração de vagas com carteira assinada. Superada a recessão de 2014-2016, a recuperação do mercado de trabalho se concentrou nas vagas sem carteira assinada e por conta própria, que alcançam quatro em cada dez ocupados, a maioria negros, mulheres, pessoas de baixa escolaridade, nordestinos. Em 2019, 62,9% dos trabalhadores contribuíam para a Previdência, três pontos percentuais abaixo do melhor momento da série histórica do IBGE, de 65,6% em 2016. Entre as domésticas, 72% não são cobertas pela CLT. Não por acaso, ontem, tornou-se pública a carta-manifesto Pela Vida de Nossas Mães, com apelo idêntico ao do vídeo de Maria Isabel à classe média: dispensem e paguem as trabalhadoras.
Da atenção aos trabalhadores informais dependem a saúde pública e a resiliência econômica. Primeiro, pela dificuldade de impor distanciamento social a um grupo que, sem trabalho, não come. Os conta própria sem CNPJ ganham em média R$ 1.355 por mês; os empregados sem carteira do setor privado, R$ 1.411; as domésticas, R$ 762, menos de um salário mínimo. O governo já anunciou a intenção de destinar R$ 200 aos autônomos inscritos no cadastro único que não recebam Bolsa Família nem BPC. Vai aportar R$ 15 bilhões por três meses. Ajuda, mas não resolve.
O arsenal dedicado à rede de proteção social, tal com o do sistema financeiro, precisa aumentar. O governo já anunciou que vai assumir o auxílio-doença dos trabalhadores afastados pela Covid-19. É ação na medida para os com carteira. Falta incluir os microempreendedores sociais entre os beneficiários com a desoneração tributária; e oferecer também a eles alguma renda mínima. E ampliar a base do Bolsa Família; fora do programa estão 15 milhões dos 28,884 milhões que fazem parte do cadastro único. Falta desobstruir o acesso ao INSS que resultou numa fila interminável de brasileiros à espera de pensão, aposentadoria, auxílio-doença, Bolsa Família e BPC.
O governo precisa rapidamente viabilizar, em parceria com estados e municípios, a contratação de profissionais de saúde para dar conta da pandemia, como lembrou o economista Marcelo Medeiros. E, também com os entes da Federação, estruturar mecanismos de distribuição de alimentos, água, remédios e kits de higiene. É o mínimo que o Estado terá de fazer para garantir a sobrevivência dos brasileiros e às autoridades no poder, a possibilidade de futuro.
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