sexta-feira, 20 de março de 2020

Maria Cristina Fernandes – O vírus e o desemprego contam seus mortos

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Se faltar verba no SUS, não será possível conter pandemia. Sem proteção aos desempregados se reproduzirá a equação que leva ao aumento da mortalidade. Assim como o contágio, a crise é exponencial

De todos os alarmes desde o início da crise do coronavírus, nenhum se propagou mais rapidamente do que o áudio de uma reunião no Instituto do Coração, em São Paulo, com especialistas do comitê de contingenciamento da doença no Estado que lidera os casos nacionais da covid-19, nome da doença provocada pelo vírus. Havia 200 pessoas no auditório e foi pelo relato a colegas, gravado em áudio por um dos médicos que convocou a reunião, que seu conteúdo se espalhou pelo país: a pandemia demandaria um número de leitos em Unidades de Terapia Intensiva (UTI) que São Paulo não dispõe e nem tem como dispor.

A informação de que o Estado mais rico da federação está desaparelhado para enfrentar a mais agressiva pandemia mundial em um século ligou o modo pânico nas redes sociais. O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, cuja serenidade tinha sido, até então, a principal vacina contra a doença, achou por bem avisar que o gato subiu no telhado do SUS: “Se a pandemia não tem uma letalidade individual elevada, o sistema de saúde tem”.

Entre os muitos fantasmas espraiados pelas narrativas virtuais, o pior deles tem sido o da gripe espanhola, pandemia que matou uma multidão estimada entre 17 milhões e 50 milhões de pessoas em todo o mundo há um século. A população era equivalente a um quarto da atual. A evolução da medicina e da saúde pública desautoriza projeções como aquelas que alimentam o pânico das redes sociais, mas não impede que séries como “Pandemia”, da Netflix, cujo lançamento coincidiu com a emergência do coronavírus na China, abra pelo anunciado: “Ninguém duvida que uma pandemia semelhante vai voltar a ocorrer, a questão é saber quando”.

O avanço da ciência não deixou as trevas para trás, da comunidade de pais de classe média no Estado do Oregon (EUA), que lidera protestos contra campanhas de vacinação, a um acampamento de uma equipe de médicos no Congo, atacado por pessoas que acreditam ser a vacina a portadora da doença. Fosse produzida hoje, a série teria a oportunidade de incluir um chefe de Estado nos despautérios: o presidente Jair Bolsonaro, que saiu do Palácio do Alvorada no dia 15 de março, com resultados pendentes de novo teste do coronavírus, para apertar as mãos de apoiadores e se congraçar com manifestações Brasil afora.

O temor da recessão empurrou governos, em todo o mundo, a gastar bilhões para o combate e a prevenção da covid-19. No Brasil, a discussão sobre o crédito suplementar de R$ 5 bilhões para o combate à doença começou pelo pugilato das emendas ao Orçamento e findou por derrotar os dogmas fiscais do Ministério da Economia com a decretação do estado de calamidade. A disputa entre o Executivo e o Legislativo passa ao largo da desidratação do SUS. Em artigo publicado no fim de 2019, o economista da FGV/Ieps Rudi Rocha, em parceria com duas outras pesquisadoras, Isabela Furtado e Paula Spínola, diz que o gasto de 9% do PIB brasileiro com saúde, despesa que equivale a U$ 1,4 mil per capita, é superior a de só dois dos 35 países da OCDE (México e Turquia), mas excede a despesa média da América Latina.

Na região, o país fica em quinto lugar, atrás de Uruguai, Chile, Panamá e Argentina. O gasto com saúde no Brasil, no entanto, reproduz o carimbo da desigualdade. Em proporção do PIB, o gasto privado (5%) na saúde no Brasil só perde para o americano (8,4%). O SUS, sistema público que atende três quartos da população brasileira, fica com apenas 42% do gasto total. Custa menos e entrega mais do que o Medicare e o Medicaid juntos, diz o economista, citando as duas modalidades do sistema público de saúde dos Estados Unidos.

A Emenda Constitucional que impôs o teto dos gastos tirou R$ 9 bilhões do SUS em 2019 e deve repetir a garfada em 2020. Com isso, o orçamento da saúde no Brasil fica ainda mais distante daquele previsto como o necessário por Rocha para evitar o colapso do serviço, 12,8% do PIB em 2060. Parece muito, mas não é. O economista cita a estimativa atual de 8,2% do PIB global (US$ 10 trilhões) para o gasto global em saúde, diz que as despesas mais do que dobraram nos últimos 50 anos na OCDE e que rumam para comprometer a metade da riqueza desses países em 2050.

O SUS é pressionado ainda pelo setor privado, que lança, a cada dia, planos de saúde com coberturas minimalistas para caber no orçamento de famílias com empregos precarizados e de empresas que já têm na rubrica o segundo maior gasto, só atrás da folha de pagamentos. Depois que os planos de saúde, ao longo das primeiras semanas da epidemia, rejeitaram a cobertura dos exames para a covid-19, a Agência Nacional de Saúde (ANS) foi obrigada a editar portaria reafirmando a regulamentação sobre o direito do segurado à cobertura.

O secretário-executivo do Ministério da Saúde, João Gabbardo, foi taxativo, durante uma entrevista coletiva, sobre a transferência de pacientes com suspeitas da doença da rede privada para a pública: “É inadmissível”. Não chegou ao ponto, porém, de intervir em hospitais privados, como fez a Espanha, depois que a doença avançou em ritmo italiano no país.

Ministro da Saúde entre 2007 e 2011, quando o Brasil enfrentou a epidemia do H1N1, contra a qual foram imunizados 100 milhões de brasileiros, José Gomes Temporão reconhece que o vírus chegou num momento em que a corda no SUS está esticada. Não se trata de um ataque ao sucessor. O ministro Luiz Henrique Mandetta conquistou a confiança do “partido sanitarista”, geração envolvida na construção do SUS que ultrapassa fronteiras partidárias estejam estas no DEM de Alceni Guerra, no MDB de Saraiva Felipe ou no PT de Alexandre Padilha.

Temporão elogia tanto antecessores quanto José Serra, um dos maiores responsáveis pela vantagem comparativa do Brasil no combate à doença, que é a baixa incidência de fumantes (menos de 10%) na população, quanto o atual ocupante do cargo. Diz, no entanto, que o vírus aportou no Brasil num momento em que os recursos suprimidos afetam os repasses para Estados e municípios, a oferta de leitos, o tempo de espera para consulta e a capacidade de adquirir equipamentos de respiração mecânica.

Não há sistema de saúde no mundo que suporte, sem reforço, a pressão provocada por uma pandemia. O coronavírus, porém, atinge o SUS num momento em que o sistema acumula anos de subfinanciamento e de aumento de demanda por parte de uma população que perdeu acesso a planos de saúde. Em outro artigo publicado na “The Lancet”, desta vez com uma equipe de outros seis pesquisadores brasileiros e britânicos, Rudi Rocha atestou que a cada ponto percentual a mais no desemprego, a mortalidade cresceu 0,5% entre 2012 e 2017, causada, principalmente, por problemas cardiovasculares e câncer. Ao longo desses cinco anos, 30 mil mortes poderiam ter sido evitadas se a curva da economia não tivesse se inclinado para baixo.

O estudo mostra que, na grande crise financeira de 2008, a rede de proteção social do Hemisfério Norte impediu não só que o desemprego resultasse no aumento de mortalidade como ainda reduziu óbitos decorrentes de doenças cardiovasculares. Ainda que sem tirar conclusões definitivas no tema, o estudo sugere que o fenômeno se deva à substituição das horas de trabalho pelo lazer e à supressão de hábitos pouco saudáveis como fumo e bebida.

No Brasil, o fenômeno é inverso. Na recessão, não apenas os serviços de saúde têm seu financiamento afetado como as pessoas são empurradas para a “uberização”. A precarização das condições de trabalho não apenas sobrecarrega o SUS como tira de seus usuários a capacidade de adquirir medicamentos. No levantamento dos mais de sete milhões de mortes ocorridas no período nos 5.565 municípios brasileiros estratificados por idade, sexo e raça, os pesquisadores encontraram homens negros e pardos entre 30 e 59 anos como os mais atingidos. Entre brancos, a associação entre desemprego e mortalidade foi pouco significativa.

Introduzida no Brasil por brasileiros de classe media alta que regressaram de viagens ao exterior, a covid-19 se tornará mais explosiva à medida que atingir cortiços e grandes favelas de alta densidade demográfica em que o compartilhamento de cômodos - e até a falta d’água - incentiva a propagação da doença. Medidas como o trabalho remoto nas empresas também tendem a beneficiar mais a classe média do que os trabalhadores de baixa renda que movem a construção civil, os transportes públicos, o atendimento nos supermercados e os serviços de manutenção e limpeza dos prédios públicos e privados.

As medidas de isolamento social promovidas na China e na Coreia do Sul levaram a que esses países conseguissem frear a doença mais rapidamente do que outros países, como a Itália, cujo alto índice de mortalidade é atribuído à demora de procedimentos mais drásticos. No Brasil, como a adoção das medidas de isolamento seguirá o viés da desigualdade de renda, a propagação da doença não custará a cobrar um preço mais alto dos mais pobres, 100% dependentes do SUS.

O coronavírus aguçou o bordão da disputa - “se o angu é pouco, meu pirão primeiro”. A Espanha vai liberar o equivalente a 20% do PIB e até o recalcitrante Donald Trump pretende enviar um cheque U$ 1 mil para a casa de cada americano, mas, no Brasil, o SUS disputa o caixa com empresas em busca de capital de giro.

Se faltar dinheiro para a saúde hoje, o Brasil terá mais dificuldade de conter a pandemia. Se não for possível aumentar a rede de proteção para pessoas que perderão postos de trabalho e renda ou até mesmo socorrer empresas que tiverem sua atividade fortemente afetada, como as companhias aéreas, o desemprego reproduzirá a equação que, muito recentemente, levou ao aumento da mortalidade. Além do contágio, também a crise é exponencial.

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