- Valor Econômico
Teremos que usar a capilaridade do sistema de proteção social construído nos últimos 30 anos para atenuar os efeitos da crise
Em breve o país entrará num período recessivo intenso que poderá durar muitos meses. Esse processo irá afetar a vida de milhões de pessoas, provocando desemprego em massa, aumentando a pobreza e prejudicando o desenvolvimento infantil. Os impactos da recessão poderão ser maiores ou menores, dependendo da duração da crise e das medidas que serão adotadas nos próximas dias. Quem serão os mais afetados pela crise? O que poderia ser feito para amenizar os efeitos da recessão?
Vários choques estão atingindo a economia ao mesmo tempo. A paralisação temporária da economia chinesa e de vários outros países já está atingindo em cheio a economia brasileira. Hoje em dia, 10% das nossas importações vem da China e grande parte dessas importações são insumos que são usados pelas empresas brasileiras. A paralisação da importação de insumos fará com que muitas empresas tenham que parar a sua produção por um tempo e afetará a produtividade daquelas que continuarem a produzir.
O segundo choque vem da redução dos nossos termos de troca. A queda no preço do petróleo, aliada à redução da demanda chinesa por matérias primas, está provocando um choque negativo nos termos de troca que aprofundará a recessão, pois há uma relação bastante forte entre termos de troca e o PIB no Brasil.
O terceiro choque (o mais importante) vem da paralisação da própria economia brasileira. As pessoas estão (acertadamente) ficando em casa para fugir do risco de contrair o vírus, deixando de ir ao cinema, teatro, shows, restaurantes, academias e de viajar. Isso terá um efeito brutal sobre as receitas das pequenas empresas e dos trabalhadores informais, que não recebem salários se não trabalharem ou venderem seus produtos. Qual será o tamanho do estrago?
Se a greve dos caminhoneiros durou 10 dias, paralisou apenas uma parte da economia e já ceifou uma parcela significativa do PIB, o que acontecerá com uma paralisação generalizada na economia que poderá durar mais de 3 meses, aliada a uma redução dos termos de troca e paralisação das importações da China? Estamos falando de uma redução de vários pontos percentuais no PIB, com elevação da taxa de desemprego, que poderá chegar a um quarto da PEA, e redução dos salários, que terão efeitos dramáticos sobre a pobreza e nutrição das famílias, especialmente dos que trabalham no setor informal.
O que fazer para atenuar esse cenário dramático? As medidas tomadas essa semana pelo governo, que visam a oxigenar financeiramente a economia, dirigir recursos adicionais para a saúde e para os trabalhadores informais vão na direção correta, mas são insuficientes. Para atenuar os efeitos da crise que se aproxima, teremos que usar a estrutura de proteção social desenvolvida nos últimos 30 anos para atender os mais pobres de forma emergencial.
Precisamos aumentar temporariamente o valor das transferências de renda e reforçar as equipes dos CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) municipais para que elas consigam cadastrar rapidamente no programa Bolsa Família os trabalhadores informais que perderão seus empregos. Esses cadastros deveriam ser feitos através de um aplicativo desenvolvido pelo governo federal, e as transferências devem ser concedidas prioritariamente para as mulheres chefes de família, desde que não participem de outro programa social, não recebam aposentadorias e não tenham familiares empregados no setor formal.
A ideia de aumentar as transferências de renda para os mais pobres e informais tem sido defendida principalmente pelo pesquisador Marcelo Medeiros, do Ipea. Atualmente, cerca de 13 milhões de famílias recebem em média em torno de R$ 200 por mês do Bolsa Família. O governo deveria aumentar de imediato esse valor para R$ 400 pelos próximos seis meses, o que custaria R$ 15,6 bilhões.
Além disso, deveria incluir no programa Bolsa Família todas as famílias que já estão no Cadastro Único do governo federal, para que elas possam receber o benefício emergencial, com os mesmos condicionantes listados acima. Isso significa incluir mais 12 milhões de famílias, que receberiam R$ 400 por 6 meses, o que custaria mais R$ 29 bilhões. Se o desemprego atingir 25% dos trabalhadores informais, teremos mais 10 milhões de trabalhadores desempregados. Se metade deles não tiver outra fonte de renda e ainda não estiver no cadastro único, será necessário estender o benefício emergencial de R$ 400 para outras 5 milhões de famílias, o que custaria mais R$ 12 bilhões, perfazendo total de R$ 56,6 bilhões.
Tudo isso pode ser feito sem mexer na PEC do Teto, usando os créditos suplementares para eventos extraordinários e decretando estado de calamidade pública.
Para cuidar da saúde das famílias mais pobres é importante evitar o contágio, reduzindo as movimentações das pessoas pela cidade e reforçar as equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF), que chega em 98% dos municípios brasileiros e já teve impactos importantes na redução da mortalidade em todas as faixas etárias.
Precisamos usar as agentes comunitárias que fazem parte dessas equipes para esclarecer as famílias sobre os sintomas e evitar um colapso do sistema de saúde e aumento do contágio que ocorrerá se todos com sintomas leves forem para os hospitais de referência. As agentes poderiam passar instruções pelo telefone ou WhatsApp, assim como é feito para as famílias mais favorecidas.
Também será necessário diferir o pagamento de todos os impostos e taxas dos pequenos empreendedores individuais. A medida do governo que permite a redução de salários e da jornada de trabalho para os trabalhadores formais é acertada, desde que seja temporária e não permita a redução de salários abaixo do mínimo. É importante preservar empregos que serão utilizados quando a crise passar.
Em suma, o momento é grave e as medidas tomadas agora irão determinar a magnitude dos efeitos da recessão sobre os mais pobres. Teremos que usar a capilaridade do sistema de proteção social que construímos nos últimos 30 anos para atenuar os efeitos da crise. A prioridade agora é cuidar da saúde das pessoas e criar um benefício emergencial para as famílias que ficarão mais pobres devido à crise. Não é hora de minimizar a magnitude e os efeitos da crise que se aproxima, é hora de agir para evitar uma tragédia social.
*Naercio Menezes Filho, professor titular da Cátedra Ruth Cardoso no Insper, professor associado da FEA-USP e membro da Academia Brasileira de Ciências,
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