- Revista Veja
A definição mais simples talvez seja a mais correta: trata-se de um homem reacionário, desprovido do mínimo preparo para qualquer ofício público de destaque
O Brasil é cheio de situações inusitadas quando se trata de Presidência da República: são presidentes (dois) que morrem antes de tomar posse, é presidente que renuncia com plano frustrado de voltar nos braços do povo, são outros dois que sofrem impedimento em menos de 25 anos, é presidente que se suicida, é presidente derrubado por golpe militar, enfim, já tivemos de quase tudo, mas nunca tivemos o que temos agora: um presidente no cargo, mas fora do exercício precípuo da Presidência.
Tantas Jair Bolsonaro fez no primeiro ano de mandato que os Poderes da República cansaram e, na hora da crise dramática de saúde pública com repercussões seriíssimas na economia e na política, o deixam de lado e vão ao trabalho. Ainda bem.
Enquanto no mundo os chefes de Estado são os porta-vozes da dimensão da gravidade, aqui o mandatário minimiza, mantém o travo de desafio político e faz cenas canhestras. As movimentações, tomadas de providências e reuniões de autoridades federais para tratar do andamento da pandemia da Covid-19, ocorrem sem a presença do presidente, que em palco paralelo contraria a realidade (planetária, diga-se) numa demonstração de completo descaso em relação ao conjunto dos governados.
Em contrapartida, Bolsonaro contribui para a deterioração de sua imagem/credibilidade/popularidade até junto aos simpatizantes e por isso tem recolhido malefícios. No seu afã diuturno de testar limites, desta vez ultrapassou uma fronteira perigosa, transitando do terreno das relevâncias fáticas para o ambiente das irrelevâncias práticas do qual se tornou cidadão honorário nesta crise. A figura dele remete à qualificação de “café com leite”, para alguém que não entende as regras do jogo e passa a ser visto pelos demais como a pessoa que joga sem valer.
Jair Bolsonaro assemelha-se hoje a um chefe café com leite. Ele fala e o país toca o baile ao ritmo das necessidades objetivas. O noticiário mais sério já começa a reduzir o espaço dele. A ponto de dia desses o Jornal Nacional simplesmente ignorar mais uma declaração do presidente sobre histerias e festinhas de aniversário, ocupado que estava em informar à população sobre o estado de calamidade pública e as precauções necessárias.
De fato, o Brasil e o mundo têm coisas mais importantes a fazer do que dar atenção a bobagens, ainda que presidenciais. Isso não quer dizer que não tenhamos um problema adicional por aqui, dado que ignorar o mandatário talvez seja o melhor remédio nesta hora aguda, mas obviamente não é uma opção de caráter duradouro.
A pandemia e seus desdobramentos não criaram a figura do Bolsonaro desprovido de senso político, social e, sobretudo, humanitário. Antes, permitiram que essa característica emergisse em público de maneira exacerbada e descontrolada que foi reprovada por todos. Nem a turma da linha de frente embarcou na canoa da negação. Descontados um ou outro ato de submissão, mesmo dentro do governo as reações foram da crítica à condenação, marcadas todas pela perplexidade.
“Nunca se viu um presidente no cargo, mas fora do exercício da Presidência”
Ficamos, e ficaram autoridades e especialistas de todos os setores, perplexos porque ao senso comum faltam parâmetros para compreender a razão de alguém, notadamente no exercício da Presidência da República, desafiar a racionalidade de atitudes que visam a preservar vidas.
O impulso é dizer que tal pessoa é portadora de personalidade sociopata. Isso pode até satisfazer de imediato a revolta, mas não explica as coisas, muito menos indica um caminho para a administração do problema. Ocorre coisa semelhante quando se diz que o presidente é fascista, e encerra-se assim a discussão de conceitos não necessariamente comprovados em face da história e da ciência.
A definição mais simples talvez seja a mais correta: trata-se de um homem reacionário, desprovido do mínimo preparo para qualquer ofício público de destaque. Nisso, Jair Bolsonaro encontra-se em igualdade de condições com milhares, provavelmente milhões de cidadãos e cidadãs que, no entanto, não estão onde ele está.
Surge, então, a pergunta: o que fazer? Antes da eclosão da urgência de saúde pública a questão do impedimento entrava na pauta ainda que como hipótese remota. Agora isso não cabe até em atenção ao sentido da emergência outra, mas a questão permanece no radar, pronta para amadurecer assim que o atual vendaval passar.
Pode ser mais rápida ou lentamente. O ritmo vai depender do próprio presidente, a quem cabe sopesar alcan¬ce e consequências de sua atuação, que, ao pesar cada vez menos, correm o risco de acabar não valendo nada.
Publicado em VEJA de 25 de março de 2020, edição nº 2679
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