Duas crises, dois scripts
O conflito entre o presidente Bolsonaro e o ex-ministro Sergio Moro, em torno da substituição do comando da Polícia Federal e a consequente exoneração do segundo, a pedido, provocaram um terremoto no governo federal e detonaram nova crise política. A óbvia repercussão desses fatos palacianos sobre as bases de apoio social ao Presidente constitui um prato cheio para o jornalismo político e para a dinâmica das redes sociais, a ponto de colocarem em segundo plano, no noticiário, a crise sanitária e econômica, ambas com repercussão social muito mais amplas. Isso resulta de uma interpretação da crise política como crise institucional, que se torna possível em face dos ingredientes de caráter criminal - crimes comuns e de responsabilidade política - incluídos na mútua lavagem de roupa suja em público, promovida por essas duas destacadas personagens políticas.
Contraste evidente com a crise política que culminara, uma semana antes, na exoneração, pelo Presidente, do ex-ministro da Saúde Luiz Mandetta. A crise reforçou a despolarização política, em favor de maior unidade do país para enfrentar a crise sanitária e mitigar seus efeitos econômicos e sociais. Deu lugar a uma convergência entre sociedade política e sociedade civil, com forte adesão popular à política do MS e de governadores, provocando crescente isolamento do presidente, que em situação de crescente solidão, atacava moinhos de vento no intuito de sabotar o novo ambiente político. Enquanto enfrentava crises do mundo real, o sistema político, tendo o Congresso como eixo articulador principal, articulado a governadores, acumulava legitimidade para, quando efeitos mais agudos da epidemia amainassem, convocar a sociedade a resolver, civicamente, o problema do presidente subversivo. A consciência de que é preciso afastá-lo já se consolidara e ganhava respaldo social, ao tempo em que a prudência política esperava momento próprio para fazê-lo sem agravar a insegurança pública.
Com o caso Moro, dá-se o oposto. Retorna o clima de polarização política, com aceleração de um processo que tende a detonar desde já uma luta pelo impedimento do presidente. Para não atropelar o estado democrático de direito, não poderá ser processo sumário. Precisará dar tempo a investigações minimamente idôneas e a reações da opinião pública a cada passo do processo. Além disso, como as evidências da conduta do presidente e seu grupo de seguidores demonstram, não será passeio imune à explosão de violência política de dimensões imprevisíveis. Ainda que o processo detonado pelo duelo de mitos se resolva pacifica e mais rapidamente, pela mão do STF, precisará continuar no Congresso, comprometendo sua concentração na inadiável missão de dar governabilidade ao país nas circunstâncias de uma pandemia que se encontra em momento de crescente agravamento.
Analistas têm dito que o caso Mandetta virou passado longínquo após o terremoto Moro. Tentarei argumentar em sentido oposto, tanto quanto às relevâncias dos dois processos para a política brasileira como quanto à atualidade de ambos, do ponto de vista das suas consequências sociais. Para isso, é preciso fazer um esforço retrospectivo preliminar, na direção desse suposto passado remoto. Para isso, sirvo-me, em parte, de afirmações já feitas numa entrevista ao jornal Tribuna da Bahia, de 20.04.2020.
Com a descontinuidade política e gerencial gerada pela substituição do ministro da Saúde, a sociedade perdeu a orientação segura, transparente e diária que vinha sendo dada pelo Ministério. O próprio Estado sofreu, porque suas instituições, flagrantemente em desacordo com a decisão presidencial, ficaram ainda mais tensionadas, fato que se torna mais visível com a sua possível contaminação pela crise política seguinte. E o governo, particularmente, porque precisou alterar conceitos políticos, procedimentos técnicos e rotinas administrativas em pleno desenrolar de uma situação crítica.
O impacto sobre o presidente foi ambíguo. A decisão na contramão da ampla maioria da população desgastou mais sua imagem. Mas o devolveu ao jogo. Retomou a iniciativa política, ainda que do modo imprudente de sempre. A imprudência aprofundou seu isolamento político, mas reanimou suas falanges, tanto as radicais – energizadas pela ostentação de autoridade - como as áulicas, animadas por terem acesso espúrio a poderes governamentais, graças à inépcia do presidente. Umas e outras estão presentes ou representadas no ministério, que sobrevive de sobras e à sombra do chefe que declina.
O resultado mais importante, do ponto de vista político, foi Bolsonaro ter afastado a personalidade pública em ascensão no governo, o ministro da Saúde, na qual ele enxergou um concorrente. De fato, desde que Lula caiu no ostracismo e enquanto Sergio Moro permanecia absorvido pelas intrigas palacianas, ninguém conseguia se comunicar com a massa da população, como Mandetta conseguiu. Tirando-o de cena, mesmo ao preço de colocar a saúde pública em sério perigo, Bolsonaro tentou reverter um jogo que lhe era desfavorável. Bastou que se passasse uma semana para que ficasse clara a distância entre a intenção e as consequências políticas do processo sem volta que seu gesto detonou.
De aposta em aposta, Bolsonaro confrontou os poderes da República e estimulou manifestações golpistas. Foi rechaçado com firmeza pela imprensa, sociedade civil e por quem tem está à frente de instituições civis do Estado. Seu eco autocrático perdeu-se nos desvãos do constrangimento da corporação militar. Como último recurso, divisa uma boia salva-vidas numa abertura de negociações com o centrão. Farejando a desgraça do presidente e o desastre coletivo do governo, Sergio Moro fincou pé contra pretensões do chefe acuado, em relação à Policia Federal. Testado nos limites de tolerância, o ex-juiz esticou uma corda que vinha deixando frouxa. E construiu, ao seu estilo, um desembarque midiático.
Como já dito, no caso de Mandetta o filme não foi o mesmo, quanto aos papéis do presidente e dos contendores. Bolsonaro, no caso de Moro, também teve, em tese, motivação político-eleitoral, mas o caldo entornou por conta de seu desconforto com investigações criminais sobre sua família. E diversos também foram os roteiros de Moro e Mandetta. O primeiro pediu demissão ruidosamente, entrando em conflito pessoal com Bolsonaro. O segundo foi exonerado e saiu sem atirar, porque era desnecessário. Ainda no cargo, ele estabelecera, em relação ao presidente, o contraponto que deu à sua saída a substância política de divergência em torno de uma política pública crucial para a sociedade.
O respaldo social de que Moro pessoalmente desfruta precede sua chegada ao governo e até o momento da briga não se pode dizer ao certo se estava intacto. O de Mandetta resultou da sua atuação pessoal no cargo e, principalmente, da política que adotou no ministério. Política que tinha respaldo técnico e obteve apoio social maior do que aquele dado, no ambiente político, à emergente visibilidade pública da pessoa do ministro. Esse foi moderado, inclusive no centro e centro-direita, onde interage com facilidade, por afinidade prévia. A possibilidade do DEM passar a cogitar seu nome para 2022 não poderia deixar de ser percebida e causar insegurança pela presença, ali já assumida, de aspirações correlatas. Caso do governador Dória, que lidou com o MS em cooperação técnica e parceria política, mas sem prejuízo do próprio protagonismo. Apostou num contraponto político ao presidente, que o ministro não podia fazer. Na esquerda, embora não tenha havido atitude hostil, até cooperação também (caso dos governadores), houve silêncio obsequioso, combinado a reticências e ressalvas, ligadas no retrovisor, em redes sociais e sites. Sem faltarem, perto da queda, restrições de Lula e Ciro Gomes ao ministro. Elogios a Mandetta no campo político da oposição de esquerda só se tornaram mais visíveis quando não era mais ministro. Em todos os lados do espectro político a troca do ministro da Saúde foi muito criticada, institucionalmente, mas sem alusão a perdas políticas trazidas pela sua saída de cena.
Para além da conjuntura, movimentos do presidente e do governo: estratégia ou vôo cego?
Nove entre dez analistas da política brasileira constatam o isolamento político do presidente. Sem negá-lo, faço duas ressalvas. Houve uma operação para tirá-lo das cordas, levada a cabo pelos seus ministros militares. Tratou-se de uma manobra com ares de operação de estado maior. Na verdade, foi obra de grupo de militares governistas, com intenções protopolíticas que a conduta de Bolsonaro tornou vãs. A segunda ressalva é que, para políticos como Bolsonaro, isolamento é sempre um convite à radicalização. Parece inevitável que lhe caia no colo a responsabilidade política pelo aumento de vítimas da pandemia. Não haverá prova de relação de causa e efeito entre suas atitudes e o agravamento do quadro sanitário, mas há forte conexão de sentido, que aumentará com implicações sociais da recessão econômica.
Contudo, há uma estratégia de governo, da qual Bolsonaro faz parte de modo pouco usual para quem ocupa o cargo de presidente. A crise que levou à exoneração de Mandetta deixou claro, a quem tinha dúvidas, que os ministros militares não são quadros da corporação dentro do governo, cujo fito seria conter um presidente incompetente e radical, para o país ser governado apesar dele. Os paraquedistas que ocupam salas no Planalto ou na Esplanada não o fazem como agentes do Estado, ou da corporação militar, mas como governistas cujo objetivo é sustentar esse específico governo, dando respaldo a Bolsonaro, ainda que à custa de agressões ao Estado e de saias justas com a própria corporação militar. Inclusive o Gal. Braga, se fatos ulteriores não desmentirem, parece ter migrado para essa posição.
Quando, uma semana antes, convenceram Bolsonaro a não exonerar Mandetta, estavam blindando o presidente, não o ministro. O desfecho final resultou de entendimento entre Bolsonaro e seus militares.
Isso não significa que essa simbiose se manterá. Coloca-se aqui em questão o tamanho da distância entre a intenção dos militares governistas e as consequências e possibilidades reais de êxito dessa estratégia. Embora o ruído do caso Moro pareça querer insinuar o oposto, a questão política só deverá se resolver após a pandemia, a depender, em boa dose, de estragos sociais e econômicos que provocar.
É possível supor que esse grupo militar, além de exercer força de gravidade sobre grupos palacianos e ministérios, através dos quais dialoga com políticos e partidos, tenha algum apoio empresarial. A base conjuntural do entendimento que pode enlaçar, por cima, esses atores, no curto prazo, é a necessidade de retomar, o mais rápido possível, a atividade econômica. Mas para uma aliança como essa ser sustentável e ter efeitos sistêmicos, as supostas partes terão que se acertar em temas estratégicos, como o papel futuro do estado na economia e limites aceitáveis de absorção institucional do conflito social.
No caso do empresariado, é insensato pensar que chegarão a uma visão “de classe”. Decisivo será, sim, o nível de convergência possível entre setores que sejam distintos o bastante para tornar a articulação ampla e, por outro lado, suficientemente relevante em peso econômico. Essa relevância precisará compensar, na hora da operação política, a dificuldade comunicativa que o alto empresariado tem com a base da sociedade. A questão política de fundo é a escolha entre riscos e vantagens da democracia e riscos e vantagens de uma guardiania militar, hipótese possível se os interlocutores palacianos fardados passarem a ter, com seus colegas dos quarteis, uma sintonia política que hoje aparentemente lhes falta.
Os ministros militares parecem servir-se de um pensamento estratégico um pouco mais maduro. A formulação, claro, é externa ao grupo. Nesse sentido, há nexos com a corporação militar, ainda que a execução não conte com ela e até a constranja, quando entram em jogo fatores estranhos à lógica do intelectual militar. O calcanhar de Aquiles está na baixa perícia desse grupo no manejo da política, que é necessária para operar a estratégia. Isso ficou evidente na simulação improvisada e tosca de um plano de longo prazo que despertou a memória de projetos estatais de fuga para a frente, em voga nos anos Geisel, havendo também quem enxergasse, ali, flerte com o neodesenvolvimentismo estatólatra dos anos Dilma. A assinatura de generais estimula a primeira lembrança. Alguma simpatia já declarada por gente importante de esquerda (o deputado Marcelo Freixo) justifica a segunda.
Já as lideranças civis, que formam a elite política, têm se revelado prudentes e hábeis em táticas de conjuntura nessa quadra difícil, mas, ainda na defensiva e presas ao imediatismo, parecem se ressentir de uma estratégia positiva que lhes dê unidade ao lidar com desafios de médio e longo prazos. Sintoma disso foi não terem encarado a ascensão pública do ex-ministro Mandetta como capital político comum, para dar nome e sobrenome à ideia de centro político que há anos se cogita para tirar o país de uma polarização política estéril. Um cavalo passou selado, mas ainda não podia ser montado. Se partidos e lideres já houvessem se entendido sobre apostas a médio e longo prazos, o desafio da saúde pública justificaria ensaiar reação política e institucional à exoneração do ministro. Se não poderiam impedir Bolsonaro e os militares de removê-lo, ao menos teriam mostrado a eles que o preço político para plantar uma guardiania em vestes de democracia no Brasil será mais alto do que será se o centro político permanecer fragmentado. Mas os dados ainda rolam. Um otimismo moderado permite considerar a unidade da elite política civil como um processo em construção.
Relações entre Legislativo e Executivo – o estado da arte
O Legislativo tem sido o leito mais seguro para a construção de uma unidade que possa ir do centrão à esquerda, para isolar Bolsonaro. Essa via tem sido testada no contexto de combate à pandemia, sob a liderança principal do Presidente da Câmara dos Deputados. É a via da conduta já observada entre forças aliadas na viabilização da reforma da Previdência. Quando uma pauta mais consensual emergiu, essa conduta tornou-se o padrão para relações entre praticamente todas as forças e partidos. Isso tem permitido ao Legislativo suprir carências governativas da irresponsabilidade presidencial, pela ampliação de consensos internos e um diálogo tenso com zonas de racionalidade presentes no Executivo. Um script que testou positivo, não só como solução para governabilidade, mas como rota de unidade política requerida para, num instante posterior à pandemia, resolver a questão Bolsonaro.
Esse entendimento de que é preciso resolvê-la parte da premissa de que a ação subversiva do presidente, conquanto possa ter seus danos minimizados não se sabe até quando, promove fissuras nas crenças e procedimentos democráticos. Daí estende uma nuvem sobre as possibilidades de uma saída democrática a partir de 2022. Há uma pedra no caminho do reencontro do país com a sua normalidade e não se pode subestimar o fato dessa pedra estar ocupando a cadeira presidencial, usando-a para tentar trincar a democracia, de variados modos. É certo dizer que a reação institucional precisar vir. Legislativo e Judiciário precisarão observar o timing que, uma vez ultrapassado, poderá tornar essa reação impraticável. Até antes da crise que levou à demissão de Moro, três pontos políticos entrelaçavam-se à pauta da governabilidade legislativa sem, contudo, ameaçar a sua prioridade e até a reforçando: a avaliação prospectiva da possibilidade de se processar o impedimento no imediato pós-pandemia, a condução articulada da sucessão das mesas diretoras das duas casas legislativas e a formação de um consenso a respeito das eleições municipais. Segue breve e apenas panorâmica analise de cada um dos três pontos, tal como se mostravam até poucos dias atrás, para, em seguida, considerar a mudança conjuntural causada pelo estridente ressurgimento do fator Sergio Moro.
Sobre possibilidades de impeachment
Vinham dependendo de um conglomerado de fatos, circunstâncias e vontades. Fatos como a extensão da crise sanitária e suas consequências econômicas, no Brasil e fora dele. Circunstâncias como o humor do eleitorado, a ser captado em pesquisas no pós-pandemia, ou como o da realização, ou não, de eleições municipais esse ano. Vontades traduzidas em estratégias de atores políticos relevantes, nos âmbitos dos três poderes e nos partidos, com destaque para a atitude e atos do próprio presidente. E as de agentes organizados na sociedade civil, incluindo aí imprensa, empresariado e organizações populares. Com tantas variáveis, parecia encomenda para matemáticos que armassem uma matriz de probabilidades. Analistas e cientistas políticos precisavam esperar.
Do ponto de vista da política em ato, a questão não pode ser submetida a cálculos matemáticos e também já não podia ser mais postergada. As justificativas públicas para o adiamento cessariam com o arrefecimento da crise sanitária. Se a elite política não se movesse por moto próprio, provavelmente teria que fazê-lo de improviso, quando o tema ganhasse as ruas num contexto pós-isolamento, situação em que as lideranças políticas teriam menos chance de orientar a sua direção. Antecipar-se já seria o mais prudente e, se diante de uma conjuntura nada matemática, não era possível fazê-lo com clareza sobre a sequência dos passos, já estava ficando claro que era preciso fazer, ao menos, com a clareza possível sobre o sentido político que se quisesse dar ao processo. Refiro-me à necessidade que já se impunha, antes de Moro entrar em cena, de construir as premissas para que ele possa se desenrolar como causa cívica. Para tanto, precisa-se de um arco político de apoio mais amplo do que foi o do “Fora Collor” e muito mais ainda do que o arco político e social que se formou para o impeachment de Dilma Rousseff, que não estancou a divisão do país, embaixo. Conduzido assim, o processo jurídico-político do impedimento estaria a caminho de aprofundar o nível do consenso já então alcançado no Congresso.
O timing também se relaciona a condições objetivas do ambiente do STF. A crise sanitária colocou em segundo plano as clivagens políticas que vinham marcando algumas decisões e a imagem pública do tribunal e limitando suas possibilidades de exercer a moderação que constitucionalmente lhe compete. A evidência daquela situação esteve entre os motivos que faziam cada vez mais olhos se voltarem a militares, como se eles pudessem ser substitutos funcionais do Poder Judiciário. A irresolução do conflito entre o presidente, de um lado, o sistema político e a sociedade civil de outro, mostrou que o equívoco dessa posição não é só institucional, mas também político. A lição desse março/abril foi que o novo momento do STF seja valorizado, ainda mais quando se sabe que a situação pode se tornar volátil com a mudança do seu presidente, prevista para setembro e a substituição do seu decano, logo a seguir.
As sucessões no Legislativo
O tratamento desse tema parte de uma premissa. Quanto mais o ponto de equilíbrio político já alcançado nas duas casas for conservado a partir de 2021, tanto melhor para que o processo siga na direção unitária. Esse ponto de equilíbrio é soma de despolarização política e compromisso social. O primeiro termo do par exige, principalmente, reposicionamento da esquerda parlamentar, mormente do PT, cuja atitude “histórica” é de resistência à integração a um centro de articulação comum, onde não possa exercer força de gravidade. O segundo termo da equação requer reposicionamento da centro-direita, que precisará acompanhar o que se dá no mundo e rever, resolutamente, seu compromisso com a ortodoxia econômica dita neoliberal. Para ter bom andamento, essa estratégia prudencial precisa conseguir exorcizar os fantasmas de duas ideologias contrárias à política: o hegemonismo pré-político de tipo Dilma Rousseff e o fundamentalismo econômico de tipo Paulo Guedes.
Os dois movimentos vinham avançando na Câmara até o governo entrar no jogo atraindo líderes do centrão, movimento casado com a saída de Moro do ministério. Essa constelação de grupos, quantitativamente muito relevante na Câmara, mas pouco vocacionada a se envolver em questões que não sejam do varejo político mais imediato, movia-se na órbita de Maia, cumprindo papel coadjuvante. No horizonte da docilidade estavam pretensões ao cargo de presidente da Casa, alimentada por alguns membros dessa constelação pragmática de astros desprovidos de luz própria. O fato de serem várias essas pretensões reduzia, ainda mais, o perigo de alguma delas desafiar o comando do atual presidente sobre a dinâmica política da Casa. O retorno do chefe do Executivo a um contato corpo-a-corpo com alguns de seus antigos colegas influentes do baixo clero ataca Maia por um flanco que o obriga a ter ainda mais perícia ao exercitar a sua habilidade política. Evidente que, ao lado de concessões administrativas à “velha política”, na nova mesa de negociações está a sucessão do presidente da Câmara. O tempo vai calibrar o que há de realidade e fantasia nesse perigo. Ele dependerá de se saber, na época própria, se o apoio do Planalto servirá ou atrapalhará um pretendente. Mas para a política que mais interessa ao País e à democracia, o risco a ser evitado é a direção do processo sucessório sair das mãos do atual presidente, situação em que consensos amplos tornar-se-ão mais difíceis.
No Senado, incerteza adicional decorre do fato do detentor da posição institucional capaz de coordenar o processo desejar, ao que tudo indica, achar caminhos de interpretação regimental para se candidatar à reeleição. Essa situação, em si, torna o ambiente daquela Casa mais poroso a interferências do Executivo, pela exploração desse interesse, seja apoiando-o, seja estimulando desafios a sua pretensão. No Senado, o sucesso do script prudencial que sustenta o instável equilibro atual não necessariamente depende das direções da Casa e do processo político ficarem nas mãos do mesmo ator. Pode até ser requerida a moderação do Judiciário daí porque ele pode, em alguma medida, também vir a ser um ator.
O tema da sucessão está implicado na tentativa de Rodrigo Maia de retomar/ melhorar seu diálogo com a esquerda, meio estremecido desde que pautou e fez aprovar a MP do contrato verde-amarelo. Efeitos imediatos desse movimento foram notados em recíprocas declarações públicas dos interlocutores. Maia cuida, como deve, da mobilidade do seu pé esquerdo. E a esquerda, por seu turno, ocupa, como também deve, o espaço que lhe dá Alcolumbre no Senado. O alvo comum parece óbvio: acelerar, ampliar, aprofundar o entendimento político e assim acumular forças para enfrentar o Presidente.
Essa convergência de interesses contra um adversário comum não teria mesmo itinerário cor-de-rosa. Pela lógica da disputa sucessória, a esquerda pressionará Maia para enfrentar Bolsonaro, mas em litigio, ainda que relativo, com o centrão. Pela lógica do processo do impeachment cívico e não politicamente polarizado, Maia resistirá a essa pressão. O jogo todo é legítimo, de todas as partes. Contanto que os jogadores não o levem ao ponto de permitir espaço a quem quer virar a mesa e o próprio jogo. A radicalização provocada por Bolsonaro poderia servir de biombo a ministros para, à guisa de retomadas de diálogo, veicularem soluções que aliviassem sintomaticamente os impasses, mas permitissem a reintrodução, no Congresso, de uma polarização mais permanente, seja São Paulo x nordeste (Guedes), Câmara x Senado (ministros do palácio), ou fisiologismo x lavajatismo (Moro). Quando esse último deixa de ser ministro, o que era uma das latências torna-se evidência.
As eleições municipais
O presidente da Câmara tem usado um argumento prudencial para resistir ao adiamento das eleições. Seria um precedente a alimentar virtuais apetites futuros. Ao lado dessa razão, é intuitivo que haja outra, de mais complexa enunciação, porém de maior peso. A interação política entre as medidas de socorro federativo ora em curso por conta da pandemia e um processo de renovação dos governos municipais criaria, na base do sistema político que se relaciona diretamente com a sociedade, um ambiente favorável à solução que o Congresso encontre para a crise política derivada da conduta presidencial. Basta pensar na possibilidade de um efeito Mandetta, em contraste com um Teich sem efeito, para supor que Maia raciocina com hipóteses conectadas ao mundo da política real. Compare-se esse cenário com o seu oposto. Adiadas as eleições para 2022, ficariam os atuais prefeitos livres do risco das urnas e expostos a duas pressões: a do alinhamento político em torno de projetos eleitorais estaduais, comandados pelos governadores e/ou as do governo federal, que voltaria em alguns meses a deter a chave do cofre sem mais obedecer aos critérios federativos estipulados consensualmente no Congresso, no contexto da crise sanitária. Sendo fortes, no Brasil, os laços de reciprocidade eleitoral entre prefeitos e deputados federais, o aumento da força gravitacional dos governos estaduais e federal sobre prefeitos, permitido pelo adiamento das eleições, afetaria, indiretamente, parlamentares federais, no sentido de maior fragmentação das suas preferências. Tenderia a diminuir a influência da dinâmica política consensual em curso no Poder Legislativo na indução do comportamento dos parlamentares diante do processo de impeachment e da nova situação política que esse processo instituir.
Ademais, a ideia de prorrogar os atuais mandatos até 2022, para a coincidência dos vários níveis de eleição, é retrocesso na autonomia que pleitos municipais passaram a ter na política brasileira, na maior influência do eleitor sobre a gestão das cidades. Unificar os pleitos, seja com argumentos financeiros, políticos ou gerenciais é flertar com mais verticalização do contencioso político e mais polarização.
O adiamento das eleições pode, no entanto, resultar não de escolhas políticas, mas de imposição de circunstâncias da crise de saúde pública. Para não brigar com fatos, talvez haja espaço para pensar em adiamento por alguns meses, garantindo a separação dos pleitos. Se as circunstâncias e interesses descartarem solução intermediária e houver unificação em 2022, o cenário aqui suposto como adverso não produz fatalidade. Havendo política e preservada a democracia, todo limão pode virar limonada.
Especulando preventivamente sobre o longínquo 2022
Com a pandemia, Keynes voltou à voga em economia. Mas seu chiste pragmático de que “a longo prazo todos estaremos mortos” tem estado no radar da elite política brasileira e aqui se trata da elite civil, nela incluídos militares e ex militares que entram na política. Tome-se o Congresso e governos estaduais como palcos e será visto como a elite política, atacada por um senso comum que a condena por seus vícios e por suas virtudes, entrega-se a manobras táticas defensivas e habilmente as converte em contraofensivas. Essas devolvem-lhe poder de iniciativa, usado para tomar certas decisões racionais e socialmente positivas, como tem ficado mais evidente durante as crises que ora atravessamos. A partir dessa performance tática, lideranças políticas, ocupando posições institucionais chave, têm conseguido não só livrar o país de se converter num quintal de milicianos, como recuperar, embora em dose ainda pequena, uma reputação razoável, que tinha sido quase completamente varrida pela sucessão de seus erros e, em seguida, pela captura do ambiente político pelo fundamentalismo lavajatista.
Sem de modo algum pretender fazer reparo a essa conduta tática, é possível esperar que a ela se junte alguma perspectiva estratégica, a que for possível num contexto tão volátil. Algumas linhas do que pode ser essa adição tonificadora foram esboçadas acima como sendo derivadas lógicas da tática prudencial que se tem adotado, especialmente na Câmara dos Deputados, não só por seu presidente e alguns dos líderes partidários. Exemplificam prudência, também, a chegada à cena política de jovens parlamentares eleitos acenando a uma “nova política” e que logo se distinguiram da demagogia rasteira que se apossou dessa ideia. São pessoas, mulheres e homens, algumas muito jovens, que têm compreendido, na prática, a dignidade e a eficácia da tradição do trabalho parlamentar para efetivar os compromissos que assumiram com seus eleitores. Nota-se também a crescente musculação política do presidente do Senado, um neófito alçado ao cargo pela onda de descrédito da chamada “velha política”.
Também se pode interpretar como prudencial a recente guinada pragmática ao centro do governador de São Paulo, a atuação admirável do prefeito paulistano, cujo espírito público vence limites da sua saúde pessoal; a moderação surpreendente (ainda que possa ser um estado febril efêmero) que acomete o governador do Rio de Janeiro, a cooperação ativa de governadores nordestinos de esquerda numa articulação federativa liderada por Dória, para não falar do surgimento de genuínas atitudes prudenciais, como as do governador gaúcho e a do ex-ministro da Saúde, já aqui bastante comentado.
São exemplos diversos e distintos de um embrião de um promissor processo regenerativo da política brasileira, pelo qual ela retoma seu espaço, miseravelmente usurpado, desde 2014, por uma associação destrutiva de ideologia e distopia. Isso tem relevância estratégica para quem busca uma saída política para a crise, que signifique opção pela democracia, não apenas em oposição a formas aberrantes de autocracia, ditadura, fascismo, etc.., mas como algo também muito distinto de uma guardiania, seja ela judicial, militar, tecnocrática, ou qualquer outra.
Uma estratégia democrática não precisa de um ingrediente diferente daquele que compõe a tática democrática hoje em plena operação no Brasil. A atitude prudencial pode orientar uma e outra. E diversos são os caminhos pelos quais ela pode prevalecer. Talvez uma das primeiras tendências de uma política prudencial é não se congelar em um plano, fora do qual ela se sinta em fracasso e resmungue, isolando-se no resmungo até se comportar como ideologia. Ela pode, como se sugeriu aqui, arriscar-se num passo político ousado, como o de dar partida a um processo de impedimento de um presidente, cinco anos após outro, desde que seja um processo distinto, pelo seu caráter cívico, não só republicano e democrático. Afinal, a aventura destrutiva atualmente investida de poder político ameaçar não só a república, mas o próprio estado; não só a democracia, mas a própria sociedade.
Ninguém sabe se a situação concreta permitirá que a solução parta de uma articulação entre Legislativo, Judiciário e sociedade e se concretize tão logo a pandemia passe, como aqui se supõe desejável e possível. Talvez ela não se consume, porque dividiria parte do que já está unido e assim perderia sua razão de ser. Nesse caso, por uma razão política razoável, será melhor esperar 2022. Na ausência de certeza, a prudência sugere que se pense nos dois caminhos sem descartar nenhum deles. O que não se pode arriscar é não termos saída democrática possível em 2022 porque se terá deixado a sabotagem da democracia consumar seu desiderato, sem a devida contenção institucional. Isso pode ocorrer, se no âmbito das forças democráticas o raciocínio se restringir a um cálculo de fins. A atitude prudencial morre no varejo político se não mobilizar também valores. Logo toda prudência será abandonada na luta para conservar o poder pelo poder. Luta ilusória, como é ilusório o poder que se exerce assim.
É inegável que essa compreensão do processo em curso no Brasil pode ser afetada pela nova crise que, nos últimos dias, levou à ruptura da aliança entre bolsonarismo e lavajatismo, pelo qual a direita havia se instalado no governo sem precisar fazer concessões ao centro político. O que mudou, efetivamente, para além das entranhas daquela aliança, com a defecção de Sergio Moro do governo?
O retorno do espectro da polarização
Bolsonaro flerta com seu fim. Isso é bom, mas deve-se moderar o otimismo político. Claro que o migrante não deve ser hostilizado porque sua migração é muito relevante para o isolamento do presidente subversivo. Mas nada nessa história tem cheiro de flores e isso não apenas por causa da pandemia. Sempre vale a pena se a alma não é pequena? Sim, mas a situação pede a todas as pessoas, na sociedade política, na sociedade civil e no povo brasileiro, alma, paciência e resiliência de gigantes. Poucos as terão reunidas, daí a prudência mandar a liderança política ser exercida por quem as tem.
A parte da esquerda que sempre mira o retrovisor já deslocou seu foco da pandemia e de Bolsonaro para mirar em Moro, seu alvo antigo. Polarização reanimada, afirma que Moro fez delação premiada. Embora isso demonstre uma atitude política maniqueísta bem conhecida, é preciso admitir que, dessa vez, há fogo real embaixo dessa fumaça que o PT atiça. A expressão não deixa de ser, em si mesma, um achado feliz e persuasivo. E é parte legítima do jogo político. Pode se tornar mais feliz ainda, para essa esquerda, a depender do andamento do duelo de baixa categoria política entre dois mitos, que ora se assiste e que parece apenas começar. O terceiro mito, que anda meio de canto, esfrega as mãos com razão, vislumbrando brecha para sair do ostracismo político aparentemente sem volta em que se meteu.
É difícil mesmo observar benignamente o tom moralista de um Moro cada vez menos veraz e a aclamação que ainda assim recebe de boa parte da imprensa e de certas corporações. Ministro de desempenho discreto, politicamente acomodado e dado a deslizes autoritários, tem sua passagem pelo ministério equiparada à de Mandetta, quando ambas contrastam nos quesitos competência, articulação política e sensibilidade social. O Congresso, como instituição, fez bem em silenciar, enquadrando a briga como disputa política, não crise institucional. Pode ter que quebrar o silêncio, mas é a atitude até aqui.
Por outro lado, grande mídia, corporações empresariais, judiciais, policiais e o moralismo em geral acharam uma rota para se oporem a Bolsonaro sem terem de valorizar o que chamam "velha política". Em vez do impeachment ser passo seguinte ao combate legislativo da hora contra a pandemia e suas repercussões sanitárias e econômicas, disparado depois dele e operado em conjunto pelas vias política e jurídica, agora o eixo mobilizador seria a justiça pela via plebiscitária da opinião pública. Os meios? Investigações, denúncias, delações, veredictos, punições, no clima de espetáculo que marcou a Lava Jato.
A leitura política dessa tentativa de guinada é o desenho de um candidato para 2022, capaz de fazer a direita se manter no governo dispensando, de novo, a convergência com o centro. A autonomia da Polícia Federal é a ponta de um iceberg que se esconde na ideia de 2022 reviver 2018, com outro mito.
O Congresso precisará encontrar um eixo para reagir e não ficar sem escada, pendurado na broxa, ou rastejar, vítima da gravidade. Encontrar o tom certo de dizer e o método adequado de agir para resistir ao atropelo de sua pauta social, pela qual segue produzindo governo, no compromisso de dar prioridade um à pandemia e seus efeitos. Ao mesmo tempo não ficar refém da procrastinação, interesse do centrão, não para salvar Bolsonaro, mas para sugar restos que um governo moribundo puder oferecer.
Já de vários lados partem proposições de CPIs, destinadas a transformar o Congresso em tribunal de performances virtuais. Curiosa coalizão de corporações da mídia e um tipo de esquerda perita em denúncias e embargos e mal vocacionada à construção política. A ela, o Poder Legislativo e governadores estaduais que com ele se articulam só podem responder com o aprofundamento de uma pauta comum, que realce questões de importância federativa, econômica e social e com uma demonstração de capacidade se obter consensos com um Poder Executivo em condições aflitivas ou, na impossibilidade de obtê-los, formar maiorias capazes de decidir por si. Tudo menos paralisia legislativa.
Vai ser difícil, pois fora dos partidos e grupos fisiológicos já há derivações sugestivas de inflexões. A esquerda, como esperado, propõe adotar a partir de agora um caminho polarizado, com variações. Ao PT interessa tirar logo o presidente do jogo para deixar o terreno limpo para seu duelo com Moro. Outros grupos de esquerda trabalham para reinstalar o clima de faxina, opondo no Congresso a “velha” e a “nova” política. Os dois ramos, por motivos diversos, parecem apostar mais na agilidade da razão jurídica de um Celso de Mello do que na paciente costura política de um Rodrigo Maia. Para que petistas não pareçam fazer alianças com “golpistas” e os outros não precisem se entender com a “velha política”.
Ao centro, a fragmentação, ainda não superada, impede que a tática prudencial, até aqui mantida, converta-se em estratégia comum. Parte importante dos campos liberal e centrista – e até mesmo social democratas continuam a esperar por uma ruptura dos ministros militares com o presidente o que, supostamente, o levaria à renúncia. Atuam para evitar o trauma que Moro e o PT desejam. Por aí parecem trafegar, de maneiras distintas, a maioria do PSDB – agora mais unido - e o MDB.
Em resumo, com Moro de novo na crista da onda, com apoio midiático, a política pode voltar a ser um vírus e partidos relevantes podem preferir, em vez de defendê-la como um valor, procurar algum tipo de atalho ou vacina. Pela via judicial, ou da conexão com ministros militares, insinua-se uma busca de não ficar na contramão da onda que pressiona o Congresso a desistir da estratégia de despolarização.
O DEM, em contraste, mostra-se mais claramente interessado na manutenção da lógica despolarizadora, por motivos não difíceis de entender. Por ser o partido dos quadros que dirigem as duas casas legislativas, sua influência cresce quando o Congresso dirige o jogo. Por ser o partido de Mandetta, a condição para pensar nele como capital eleitoral é que o centro político se fortaleça na combinação entre despolarização e compromisso social, com foco na saúde. Finalmente, porque a distribuição das posições ideológicas e de poder no Parlamento colocam, objetivamente, esse partido como candidato a ocupar a posição de centro estabilizador do sistema político, que um dia o PMDB ocupou.
O futuro da atitude prudencial na política brasileira liga-se à chance da tática atual do DEM ser compartilhada pelas demais forças políticas interessadas na despolarização. Consiste em adiar, ou ao menos moderar, o foco em candidaturas para 2022 e apostar no processo centrado no Congresso. Se, em vez disso, prevalecerem as derivações, estará posta a mesa para um revival de 2018, em 2022.
Surge aqui uma questão final que não pode calar. Afastado o tormento Bolsonaro, como se sustentará uma pinguela até 2022, num contexto destroçado pela pandemia e pela recessão econômica? O gal. Mourão e o que ele representa insinuam analogia com as condutas de Itamar Franco ou de Michel Temer? Ou o que se pode supor é conduta diversa da desses atores comprometidos com uma transição política? Se o espectro de Moro 2022 bagunça a despolarização, o de uma guardiania militar, com apoio civil, em contexto de crise, não pode ser descartado como implicação possível de um recrudescimento na fragmentação da elite política. Essa, sim, precisa acabar já. É a vacina da qual a democracia precisa.
Aprendizado histórico
Aqui é preciso evocar um processo da história política brasileira recente, que tem a ver com a concretíssima democracia que temos. Qual foi a estratégia da frente democrática que a conquistou após derrotar uma ditadura, num processo de 15 anos, entre sua formação institucional efetiva, em 1974 e o desfecho de da sua missão política, em 1988? Constituição primeiro e eleição direta depois, como aconteceu, ou diretas já e constituição depois, como poderia ter acontecido? O primeiro caminho implicava num passo intermediário: participar do antidemocrático Colégio Eleitoral. O segundo exigia, com passo intermediário, obter apoio de dois terços do Congresso a uma Emenda Constitucional.
Houve quem preferisse e defendesse tanto um como outro caminho. Em ambos os casos os argumentos e os argumentadores eram muitos, e dentre esses muitos, havia vários politicamente muito respeitáveis e vários outros socialmente bem amparados. Durante aqueles anos houve momentos de avanço e recuo, de esperança e de desalento. E muitas reviravoltas, de situações e de opiniões. Gente que preferia um caminho passou a preferir outro e vice-versa. Ao final aquela ditadura acabou e, em seu lugar, não ficou outra ditadura politicamente oposta, ou uma guardiania. Instalou-se uma democracia. Esse era o objetivo estratégico. Foi alcançado porque os atores políticos não o perderam de vista, apesar da cacofonia sobre o caminho. A unidade prevaleceu porque a liderança política soube ouvir a sociedade e por isso a preservou. Ulisses Guimarães e Tancredo Neves encarnavam, cada qual um dos dois caminhos. Cada qual lutou pelo seu, mas não apenas agiu em favor do seu. Quando preciso, em nome do objetivo comum, ajudou a pavimentar o outro. Tancredo esteve ao lado de Ulisses em todas as praças lotadas que gritavam por diretas e mobilizou, como governador de Minas, todos os recursos possíveis para lotá-las. Ulisses comandou os democratas na ida ao Colégio Eleitoral que elegeu Tancredo. Altruístas? Não. Políticos realistas, orientados aos fins e aos valores.
A regeneração da política brasileira passa pelo resgate desse tipo de realismo. Há sinais de fumaça a indicar que ele renasce, em meio aos dramas do bolsonarismo e da Covid-19. Trata-se, hoje, de sustentar a despolarização política em curso, para defender a nossa democracia, que o realismo prudencial criou. A liderança e a cidadania precisam se sintonizar e agir.
Abril de 2020
* Cientista político e professor da UFBa.
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