- O Globo
Às vezes, eu tenho quase certeza de que o presidente é um homem mau, que pratica a maldade social
O presidente Jair Bolsonaro não é mais apenas um trambolho em nossas vidas. Nesses meses de coronavírus, ele se tornou um pesadelo do qual está difícil acordar, ele não deixa. Assim que começamos a rir da desgraça que ele disse ou fez na semana passada, o presidente capricha na próxima besteira e não nos deixa esquecer a importância que ele tem, pelo que ele é, em nossas vidas. De minha parte, esbarro sempre nessa ideia de que ele foi eleito democraticamente, dentro das regras democráticas do país. Só nos resta, portanto, esperar pacientes e atentos pelos dois anos e meio que faltam para que ele complete seu mandato. A não ser que congressistas e juízes nos apareçam com motivos sérios e legais, para que ele sofra um impedimento. Mas não sei se um terceiro impeachment, em tão pouco espaço de tempo, fará bem ao país. Não sei.
Nunca vivi período político tão insuportável como este. Mesmo durante a ditadura militar, que durou 21 anos, nós sempre alimentamos alguma esperança e a fluida sensação, inventada talvez por necessidades psíquicas, de que o pior já tinha passado. E ainda havia, muito de vez em quando, inesperados sinais de que alguma coisa, afinal de contas, marchava em boa direção. Como foi, por exemplo, o tratamento dado ao cinema, durante o governo do general Ernesto Geisel, promovido pelo ministro Reis Velloso. Era como se o país estivesse ocupado por quem não devia; mas a nação estava lá, esperando que um dia a tomássemos nos braços.
Não acredito muito nessas classificações morais muito fechadas. Mas, às vezes, tenho quase certeza de que o presidente é um homem mau, que pratica a maldade social para compensar a consciência culpada da bananice com seus filhos, que podem quase tudo. Desde querer ser embaixador nos Estados Unidos, porque sabe fritar hambúrgueres; até nomear o diretor-geral da Polícia Federal. Como se PF fosse um acrônimo para Polícia da Família, da qual os Bolsonaro podem fazer gato e sapato.
Entre uma e outra gaiatice do mal, o presidente ainda promove ou apoia, no que julga ser seus domínios em Brasília, animadas domingueiras contra a Constituição, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, seus três inimigos jurados, exatamente os que o impedem de se soltar no Planalto, fazendo o que bem entender. Como ele não acredita no vírus (ou, quem sabe, já o pegou, está nos escondendo e pouco se lixando), a turma dele agora tem nova diversão endiabrada. Eles passam a noite em carreatas, na porta dos hospitais públicos, em buzinaço impiedoso, chamando os doentes infectados para sua campanha pelo fim do isolamento social.
Mesmo antes de a campanha eleitoral começar, Bolsonaro fazia o elogio sistemático de torturadores e escarnecia dos torturados. E nem se dava ao trabalho de nos dizer por que fazia isso, em nome de que religião, ideologia ou sistema político. O elogio à tortura era o elogio à tortura e pronto; não precisava de uma razão. Bolsonaro chegou a declarar que o Brasil só tomaria jeito depois de uma guerra civil, que matasse uns 30 mil. Talvez ele compense seus sonhos irrealizados com a visão dos “invisíveis”nas filas da Caixa. Ou que desconheça as necessidades deles, preferindo desfilar na Praça dos Três Poderes com empresários, para salvar a vida de suas contas bancárias.
Nos seus 28 anos de Câmara Federal, onde fez aprovar, nesse período, dois projetos seus, Bolsonaro pertenceu a nove diferentes partidos, vivendo a experiência profunda do baixo clero, aquele grupo de parlamentares que, no escurinho da Casa, topavam qualquer lance. Em 2005, um deles, Severino Cavalcanti, se elegeu presidente da Câmara em circunstâncias extraordinárias, uma reação de deputados, em crise com o Poder Executivo. A diferença é que os escândalos de que Severino fora acusado eram de muito baixa extração; como, por exemplo, a descoberta de que supostamente recebia propina do responsável pelo bar do Congresso, para onde levava seus camaradas de partido e de ideias. Não sei se o centrão terá essa mesma modéstia.
Em seu obituário sobre Aldir Blanc, Luiz Antonio Simas, um mestre, antropólogo especializado nas coisas do Brasil, nos explicou a diferença que faz entre Brasil e Brasilidade. “O Brasil”, escreveu, “é, vez por outra, como nos nossos dias, um empreendimento de ódio; a Brasilidade é um canto desesperado de amor e liberdade”. Confesso que não sei direito que rumo tomar nessa doidice que está sendo a vida pública brasileira de nossos dias. Mas sinto que estamos precisando muito de quem cante esse canto de que Simas nos fala.
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