A democracia, como sabemos, não é "coisa nossa”, como no samba de Noel; basta uma rápida olhada retrospectiva, da Independência (1822) aos estertores do regime militar-civil (1979), como tentei fazer em artigos passados (vide Por que somos assim?, A democratização do Estado, entre outros): encaremos os fatos para superarmos os obstáculos que continuam em seu caminho.
Naturalmente, isto não significa que não possamos perseguí-la (melhor dizer almejá-la, nas atuais circunstâncias). É isto, precisamente, o que fizemos a partir de 1889, quando a República inaugurou um período de aspirações democráticas frustradas pela "distância entre intenção e gesto”, como canta Chico, ou, como explica a Sociologia Política de Simon Schwartzman , pela "falta constante de correspondência entre as instituições formais do país e sua realidade social e econômica” – a primeira nos remete ao direito, a segunda ao capitalismo periférico (dependente) –, nos legando a instabilidade política crônica cujos ecos ainda se ouvem.
Depois de três mandatos presidenciais cassados, um deles moralmente (Temer), e outra cassação por vir, talvez tenha chegado a hora de encararmos as coisas livre das ilusões partidário-personalistas de outrora, indo ao seu nó górdio, que parece estar nas escolhas feitas na última das tantas redemocratizações que tivemos, quando o problema da não correspondência, acima aludida, foi negligenciado e encarado pelo viés escapista, mais funcional aos atores que almejavam o poder, do privilegiamento da forma do sistema político ao invés de sua substância, vala dizer, a base sócio-econômica onde se assenta o edifício estatal, como assinalara Victor Nunes Leal .
Leal, aliás, ao definir o que chamava de coronelismo, acabou por descrever a essência de nossa democracia, baseada, à época, no privatismo rural como cimento de nossa modernidade: "(…) concebemos o coronelismo como resultado da superposição de formas desenvolvidas do regime representativo a uma estrutura econômica e social inadequada. (…) Uma forma peculiar de manifestação do poder privado, (…) em virtude da qual os resíduos do nosso antigo e exorbitante poder privado têm conseguido coexistir com um regime político de extensa base representativa”, gerando "o mandonismo, o filhotismo, o falseamento do voto, a desorganização dos serviços públicos locais” – isto sim, “coisas nossas".
Tratava-se, pensava o autor em 1947, de uma política de transição entre o "poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terras”. Mas, à medida de seu transcurso, a transição evoluiu para um modelo, onde os chefes partidários, controlando o poder público, direta ou indiretamente, se apropriavam de parcela dos recursos para atender a todo tipo de interesse privado: quer dos eleitores, quer dos empresários, transformados em repassadores de verbas desviadas dos serviços e obras públicas – estas últimas consistindo no investimento bruto de capital fixo, tão vital para o progresso do país.
Tal modelo deu nova vida a um conservadorismo destinado ao desaparecimento, mas que, ao invés disso, ajustou-se às demandas da transformação capitalista (expansão do mercado) sacrificando a economicidade, a impessoalidade e a idoneidade das agências públicas, embora não sua funcionalidade ao capital em seu processo de acumulação – mesmo que ao preço da baixa produtividade/inovação. Isto o tornou palatável ao liberalismo econômico e também ao positivismo militar, à pretexto do controle sobre a "subversão".
O processo transformista que ele encerrava, com seu instrumental adaptado às novas condições emergentes (urbanização), seria institucionalmente moldado por meio de reformas políticas pontuais e casuísticas que procuraram sempre potencializar o apoio popular comprado, em detrimento do conquistado, sem maiores preocupações com princípios liberais ou a tão propalada racionalidade do sistema (accountability). Foi isto que permitiu ao neocoronelismo sobreviver à ditadura militar e, pelos motivos contrários (ampliação da frente antiditatorial), engatar nova metamorfose no interior do MDB sob o beneplácito do PCB. Assim, a tradição maldita (o descompasso histórico), o nó górdio de nossa crise estrutural, conseguiria sua enésima vida, agora como a base de massa para surfar a onda reversa do efeito plebiscitário pró-ditadura de 1966-1972, acaixotando, no percurso, os incautos, mais tarde forçados a abandonar o emedebismo.
A transmutação propiciou ao neocoronelismo não só galgar novos espaços no sistema partidário, como abduzir o próprio MDB, reduzido ao quercismo/temerismo, e assim esterilizar o potencial reformista da luta democrática dos anos 1970-1980, de quebra, levando de roldão até mesmo as alternativas criadas para combatê-lo (PSDB e PT) – fenômeno ainda não suficientemente discutido e compreendido pelos que dele participaram.
A forma inelutável, e de certa maneira imperceptível, como tudo se deu, só pode ser entendida se levarmos em conta os elementos da estrutura, que passaram a atuar como freio ao processo de autonomização dos sujeitos a partir dos anos 1980, enfraquecendo a Nova República ainda no ventre.
O desenvolvimento econômico que, ao longo dos anos 1960-1970, nas palavras de Carlos Nelson Coutinho , pôs abaixo a "torre de marfim" objetiva que separava os intelectuais "dos problemas explosivos da sociedade", relegando-os ao "intimismo à sombra do poder” (Thomas Mann), foi fragilizado pela recessão dos anos 1980 e a semiestagnação que se seguiu, e que perdura arrefecendo a pressão progressista da transformação humano-material sobre o regressismo histórico do escravismo (precarização), que a superestrutura, desde sempre, tratou de explorar metodicamente.
O agravamento das dualidades institucionais históricas que se seguiu, só podem ser entendidas à luz deste compromisso perverso entre as forças democráticas e o neocoronelismo e a reação que se seguiu. Se, por um lado, a esfera política foi esvaziada pela despolitização do MDB e, na sequência, de seus herdeiros (PSDB e PT) refratários a tal perspectiva, de outro, os avanços institucionais de 1988, que impulsionaram a autonomia da burocracia pública diante do poder político e econômico, e, de quebra, no vazio político, possibilitaram a transferência de certas funções tribunícias dos partidos para o STF e o Ministério Público. Transferência esta, é preciso lembrar aos desmemoriados, que, não obstante os efeitos colaterais, se mostraram tão necessárias para resguardar "o espírito das leis” (Constituição), quanto, nos anos 1920, o tenentismo, igualmente com efeitos colaterais, foi para restaurar a República em meio ao “café com leite” dos Governadores.
Foi deste modo que Executivo e, principalmente, o Legislativo, viram seu papel de elo de ligação entre a sociedade e o Estado minguar, com o fortalecimento do Judiciário e suas instituições auxiliares (MP e PF), tendo o combate à corrupção sistêmica como sua bandeira mais vistosa (vide A Justiça por um voto), embora não exclusiva. Como se não bastasse tudo isto, muita gente importante foi para a cadeia e os escritórios de advocacia que orbitam os tribunais superiores entraram na mira das investigações criminais das forças-tarefa – para não falar dos principais bancos do país –, disparando o alarme de pânico no poder e desencadeando a maré montante do moralismo de algibeira dos condenados/investigados que ameaça a Justiça, o MP, a PF e a própria Constituição.
Para nossa desgraça, diante disso, observa-se um reformismo democrático fragmentado e impotente, incapaz tanto de resistir ao estupro da Constituição como até mesmo de liderar a luta pela óbvia reforma política, implícita nas manifestações de junho de 2013. E o que é pior, em alguns casos repetindo o erro dos incautos de outrora.
Abandonadas à própria sorte, as massas arremessaram, nas eleições de 2018, a única arma de que dispunham para tentar se livrar de sua já longeva servidão, a auto-reforma eleitoral dos "não me representam!”, que tirou de cena expoentes da velha classe política no vagalhão surfado pelo bolsonarismo e seus sequazes. O grotesco espetáculo que se seguiu, do reencontro do bolsonarismo com o grand monder da velha política (vide Clientelismo, Cargos e Voto), agora não mais como o “cão de guarda”, mas em paridade de armas com a elite dominante, mostra o preço a se pagar pela confusão/omissão dos setores progressistas, paroquializados em seus cálculos eleitorais e incapacitados de entender as dificuldades histórico-estruturais presentes por falta de instrumental teórico.
O tempo – "um dos deuses mais lindos”, "compositor de destinos”, como poetizou Caetano –, não parece jogar aqui qualquer papel positivo. Ao contrário, a intelligentsia insiste em considerar os problemas do passado, da nossa formação nacional, como problemas passados, reduzindo questões fulcrais da nossa modernidade política a meras "incompreensões conjunturais" ou "injunções da maturação institucional”, supostamente passíveis de solução “sem refundações”, que julgam "catastróficas".
Em meio a tantas névoas, incompreensões e um certo cansaço, a vida – de fato, a morte – virou a mesa e forçou o atual (des)governo a se voltar para o "novo real": uma crise recessiva que pode sepultar de vez seu projeto de reeleição, o que, paradoxalmente, lhe propiciou a janela de oportunidade para a revalorização do papel do Estado na vida econômica, não apenas como provedor de renda-mínima, mas como agente de desenvolvimento capaz de alimentar o progresso humano-material para o bem-estar geral.
Pena que, de novo, a chance venha pelas mãos da direita, depois de mais uma tergiversação populista da esquerda – a primeira foi no Plano Trienal (1963), da melhor tradição celso-furtadiana – que, além da ética radical, também abandonou a luta pela produção do progresso, se contentando com a menos trabalhosa distribuição, como se isto fosse possível – depois de Marx!
Resta torcer e lutar por um impeachment com reforma eleitoral-partidária para que a possível saída pela economia (desenvolvimentismo), capaz de abrir novos horizontes para milhões de cidadãos que querem continuar vivendo numa democracia representativa, não se transforme em combustível para o demagogo de plantão.
*Hamilton Garcia de Lima (Cientista Político, UENF/DR )
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Bases do Autoritarismo Brasileiro, ed. Campus/RJ, 1982, p.17.
Coronelismo Enxada e Voto – o município e o regime representativo no Brasil; ed. Alfa-Ômega/SP, 1978, p.20.
Cultura e Sociedade no Brasil – ensaio sobre idéias e formas; ed. Oficina de Livros/BH, 1990, pp.20-21.
Universidade Estadual do Norte-Fluminense/Darcy Ribeiro.
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