- O Globo
O Senado errou e, felizmente, a Câmara corrigiu a tempo, mantendo o veto do presidente Bolsonaro à permissão de aumento de salário de certas categorias de servidores. Mas esse caso é complexo e emblemático das contradições do governo. Há um fenômeno no Brasil que poderia ser definido como sensibilidade fiscal seletiva. Atinge a equipe econômica, o próprio ministro Paulo Guedes, e principalmente o presidente Jair Bolsonaro. Guedes disse que o Senado cometeu crime contra o país. Bolsonaro declarou que não poderia governar se o veto fosse derrubado, num exagero bem conveniente. Quando o presidente cria despesas corporativas é também crime contra o país e impedimento a que se governe?
Bolsonaro é errático em matéria fiscal. Ele inicialmente não queria que houvesse proibição de reajustes a servidores federais. O ministro da Economia então incluiu esse ponto no acordo de transferência de recursos para estados e municípios para valer para toda a federação. O presidente decidiu proteger alguns. Demorou 20 dias para sancionar a lei dando tempo, assim, de aprovar aumentos de salários de policiais civis e militares do Distrito Federal, Amapá, Roraima e Rondônia, e também para votar uma reforma na carreira dos policiais federais. Os adicionais dos salários das Forças Armadas estavam fora dessa proibição de reajuste, sob o argumento de que haviam sido garantidos pela reforma da previdência dos militares.
Quando eleva as despesas públicas para beneficiar os grupos que protege, Bolsonaro não considera que isso inviabilize o governo, nem o ministro Paulo Guedes acha que é traição ao Brasil. A ambiguidade fiscal do presidente é sempre justificada pelo ministro da Economia. Ele repete que o presidente teve “60 milhões de votos”, por isso é natural que ele tome essa ou aquela medida, mesmo que seja o oposto do recomendável. Bolsonaro podia ser deputado dos militares e policiais, mas não pode ser o presidente de algumas categorias. Um presidente corporativista é uma contradição ambulante.
O número com o qual o governo tentou assombrar o Brasil não fica de pé. Ninguém sabe de onde saíram aqueles R$ 130 bilhões de custo. Parlamentares que defendiam o veto não entenderam o cálculo e falavam em algo em torno de R$ 10 bi ao governo federal em 18 meses. Economistas do setor privado que concordam com o veto também faziam contas nessa faixa de estimativa. Seja qual for o dado, o Senado estava errado por dois motivos. Haveria impacto nas contas públicas, ainda que não fosse trivial calcular. O outro ponto que mostra o quanto o Senado errou é ignorar o que está acontecendo no mercado de trabalhadores do setor privado. Há uma devastação de emprego e renda em curso. Dez milhões de pessoas deixaram a população ocupada porque seus empregos sumiram. Outros dez milhões de trabalhadores com carteira assinada tiveram redução de salário. Os servidores, que estão protegidos do risco de demissão, teriam ainda reajustes?
A história inteira desse projeto mostra a quantidade de problemas que o governo consegue criar pela sua articulação trôpega e os improvisos do ministro da Economia. A Câmara aprovou uma proposta de transferência de recursos para os estados e municípios, dado que o governo não tomava qualquer iniciativa para ajudar os estados, além do aumento do FPE. Paulo Guedes reagiu à proposta dizendo que era uma irresponsabilidade fiscal, um cheque em branco. Rodrigo Maia, que tem orgulho de sua agenda em prol da estabilidade fiscal do país, ficou ofendido. Guedes foi então ao Senado para mudar o projeto da Câmara. Levou ao senador Davi Alcolumbre um projeto próprio. Ele foi aprovado, mas nele os senadores incluíram que haveria exceções para algumas categorias na proibição de reajustes e foi isso que Bolsonaro vetou.
Agora, o Senado, ao qual o ministro acorreu na sua briga com o presidente da Câmara, acabou derrubando o veto, e ontem, por ironia, o governo precisou do deputado Rodrigo Maia para manter o veto. Desde cedo, o presidente da Câmara trabalhou para articular a manutenção do veto, fez uma declaração criticando os termos usados por Guedes para se referir à decisão do Senado e fez uma sustentação do microfone no lugar do líder com uma argumentação simples: alguém pode dar aumento? Não. Então por que derrubar o veto? Tudo teria sido mais fácil, simples, se houvesse uma boa negociação e o governo não fosse essa fábrica de atritos em todas as áreas.
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