- O Globo
O Supremo Tribunal Federal (STF) marcou de maneira expressiva, por 9 votos a 1, sua posição em defesa do Estado de Direito ao proibir o ministério da Justiça, com evidente efeito para todos os demais órgãos do governo Bolsonaro, de fazer dossiês “sobre a vida pessoal, escolhas pessoais ou políticas e práticas cívicas exercidas por opositores ao governo”, seguindo o voto da relatora, ministra Carmem Lucia.
Mas, ao mesmo tempo, o julgamento serviu para demonstrar que continuamos nos guiando por regras de compadrio e leniência, esta por parte do Procurador-Geral Augusto Aras. Os ministros que criticaram tão duramente os dossiês não aceitaram investigar o ministro da Justiça e Segurança Pública André Mendonça ´(foto) por ter mandado fazê-lo, aceitando a cândida explicação de que ele só teria começado a ser feito no dia 24 de abril, por coincidência o dia em que o ministro anterior, Sérgio Moro, pediu demissão do cargo.
Como é humanamente impossível que um dossiê iniciado num dia determinado estivesse, meses depois, tão recheado de informações, parece claro que essa explicação merece pelo menos ser investigada. Se o dossiê é obra do ex-ministro Sergio Moro, desafeto do presidente Bolsonaro, por que André Mendonça não denunciou sua existência assim que tomou conhecimento dele pela imprensa?
Se não foi ele o autor da ordem, por que não suspendeu o dossiê assim que a imprensa denunciou sua existência? Por que, considerando grave a existência de tal dossiê, ao demitir o servidor responsável Secretaria de Operações Internas (Seopi) não renegou publicamente a prática de espionagem? Por que passou dias negando sua existência, e até mesmo se recusou a entregá-lo à ministra Carmem Lucia, alegando cinicamente que ela não havia pedido, só o fazendo depois que o Congresso o pressionou?
Só existe uma explicação para o que aconteceu: no interregno entre a saída de Moro e a chegada de Andre Mendonça, alguém iniciou o dossiê e o foi alimentando aproveitando-se do vácuo de poder. Se aconteceu assim, e Mendonça explicou aos ministros do STF, nós os cidadãos, deveríamos ter sido avisados.
O Supremo, que deu duros recados ao presidente Bolsonaro em seus votos a favor dos direitos do cidadão, mandou também outro, talvez tão importante quanto para nosso futuro: pode nomear André Mendonça para a próxima vaga do ministro Celso de Mello que ele será recebido muito bem.
Quem resumiu o pensamento da Casa foi o presidente de saída Dias Toffoli em seu voto contra o dossiê elaborado no Ministério da Justiça sobre antifascistas: “Como presidente do STF, registro a atuação de sua excelência: (André Mendonça, ministro da Justiça) atuou da maneira mais correta, deu toda a transparência a esse STF”. Toffoli afirmou sobre o dossiê que “Governos anteriores tinham, ministros da Justiça anteriores tinham”, sem, no entanto, dar notícia de onde tirou essa informação.
O único que fez uma acusação sem insinuações foi o ministro Gilmar Mendes, que afirmou, atribuindo indiretamente o dossiê a Sérgio Moro: “A produção desses relatórios tem ocorrido durante grande parte do tempo de instalação do atual governo, não se tratando apenas de atos especificamente praticados na atual gestão da pasta da Justiça”.
As atuações do Procurador-Geral da República, Augusto Aras, e do advogado-geral da União, José Levi do Amaral, foram na mesma linha, a de negar a existência de tal dossiê que acabou sendo muito real para os ministros do Supremo. A alegação foi de que não havia nenhuma investigação criminal em curso, mas apenas informações públicas coletadas para prevenção da segurança governamental.
O Procurador-Geral chegou a argumentar que as informações coletadas no dossiê não prejudicaram ninguém, como se isso fosse o bastante para inocentar o governo Bolsonaro. Quanto às informações serem públicas, mas organizadas em fichários com os nomes dos cidadãos, significa não apenas que elas estavam sendo seguidas, como que os serviços de informação continuam usando a imprensa como fonte primária. Os arquivos do SNI também tinham recortes sobre as pessoas investigadas, e nem por isso elas deixaram de sofrer perseguições, prisões e torturas.
Como advertiu a ministra Carmem Lucia “(...) Não compete a ninguém fazer dossiê contra quem quer que seja ou instalar procedimento de cunho inquisitorial. O Estado não pode ser infrator. O abuso da máquina estatal para escolher informações de servidores contrários ao governo caracteriza desvio de finalidade.”
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