- O Globo / O Estado de S. Paulo
É preciso saber ir além do jogo de cena e dos esforços de manutenção das aparências
A questão não é saber se e quando Paulo Guedes sairá do governo. O que de fato importa é se houve mudança decisiva e inequívoca na forma como o Planalto percebe as possibilidades de condução da política fiscal no país. E, quanto a isso, já não há margem a dúvidas. Não há mais como alimentar ilusões sobre o real compromisso de Jair Bolsonaro com a preservação do teto de gastos.
É preciso saber ir além do jogo de cena e dos esforços de manutenção das aparências que terão lugar nas próximas semanas. E perceber, em meio ao discurso ambíguo de Bolsonaro, que a restrição de gastos passou a ser vista como um estorvo. Ao mesmo tempo que já não esconde que está explorando subterfúgios de contabilidade criativa para violá-la, o presidente declara-se disposto a patrocinar mudanças na legislação que garantam o disparo dos gatilhos requeridos para a preservação do teto.
Mas é bom lembrar que o propósito do teto e dos gatilhos é gerar desconforto. Fazer o sistema ranger. A ideia é que a compressão automática da remuneração dos servidores públicos — por redução de salários e de jornada de trabalho — e o risco de shutdown iminente da administração pública possam engendrar o senso de urgência que se faz necessário. E sirvam para dar ao Executivo, ao Congresso e ao Judiciário a convicção requerida para viabilizar formas mais racionais e sustentáveis de contenção de gastos.
Mas quem, a esta altura dos acontecimentos, acredita mesmo que Bolsonaro estará disposto a empatar seu capital político na aprovação de medidas que assegurem o disparo de gatilhos tão desgastantes de preservação do teto, como o que impõe compressão substancial nas remunerações dos funcionários públicos federais?
É preciso ter em conta que, por sete mandatos de deputado federal, Bolsonaro se dedicou, quase exclusivamente, à agenda sindicalista de defesa dos interesses de militares e policiais. E que, no ano passado, o presidente se permitiu patrocinar recomposição considerável da remuneração dos militares, na contramão do esforço de ajuste fiscal que se fazia necessário. Tampouco se pode esquecer a forma ostensiva com que, há poucos meses, o presidente atrasou a sanção da legislação que vedava reajustes salariais na esfera estadual, para que policiais militares escapassem à proibição e tivessem seus salários generosamente reajustados a tempo.
Salta aos olhos que Bolsonaro fará o que for possível para evitar um gatilho de compressão dos salários dos servidores federais. Pela mesma razão que não deixou que o projeto de reforma administrativa decolasse.
Embalado agora por seu bom desempenho nas pesquisas de opinião, Bolsonaro está convencido de que a pandemia não lhe causará tanto desgaste quanto temia. E que o segredo da reeleição continua o mesmo: expansão do gasto público. Quer turbinar o Bolsa Família, com o programa Renda Brasil, para preservar o ganho de popularidade que lhe foi propiciado pela concessão do auxílio emergencial. E está prestes a deslanchar centenas de projetos empacotados no novo Pró-Brasil.
Há poucos meses, ainda havia quem acreditasse que a batalha da preservação do teto de gastos seria marcada por um grande embate entre o ministro da Economia, solidamente respaldado pelo presidente da República, de um lado, e todo o resto da Esplanada dos Ministérios e boa parte do Congresso e do Poder Judiciário, de outro. Já está mais do que claro, contudo, que tal batalha está fadada a assumir configuração bem mais simples: um cabo de guerra, a cada dia mais desgastante, entre o Ministério da Economia e o Planalto. Alguém tem dúvida sobre que lado, afinal, prevalecerá?
Foi sob a sombra do teto de gastos que se pôde montar o espetáculo fenomenal de uma economia com inflação ineditamente baixa, taxa real de juros próxima de zero e contas fiscais escancaradamente insustentáveis. O que ainda não se sabe é com que rapidez tal espetáculo será inviabilizado, quando se disseminar a percepção de que a prometida preservação do teto se mostrou fantasiosa.
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