- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Em três casos recentes, agentes da lei claramente despreparados agiram contra a liberdade ou a vida de alguém com base em impressões subjetivas e preconceituosas
Nos últimos dias, diferentes manifestações de violação de direitos e de violência contra brasileiros desprotegidos, em diferentes lugares, indicam que aqui o Estado brasileiro vem se tornando, cada vez mais, um Estado mais excludente do que o de todas as excludências que são correntemente denunciadas. Em aparentemente inócuas ações de seus agentes e, supostamente, mas nem sempre, até em nome da lei vai se expondo o perfil de um Estado autoritário e anticidadão porque trata um grande número de pessoas como descartáveis.
Os casos são o de um jovem de 18 anos, Matheus, negro, que, num shopping do Rio, foi abordado por dois sujeitos brancos que, verificou-se depois, eram policiais militares prestando serviços a uma empresa privada de segurança. Não estavam a serviço da Polícia Militar, mas a serviço do shopping.
Matheus é entregador e ganha R$ 2 mil por mês. Fora a uma relojoaria trocar o relógio que comprara para dar de presente ao pai no Dia dos Pais. Já na loja, enquanto aguardava ser atendido, foi abordado pelos dois sujeitos, convidado a sair e na escada de serviço foi derrubado. Um dos agressores estava armado. Eles o acusavam de furto.
No Sacomã, em São Paulo, Rogério, de 19 anos, branco, trabalhador registrado, comemorava na rua de casa, com a família e amigos, seu aniversário e o Dia dos Pais. Pediu a um amigo a moto emprestada para dar uma volta no bairro. Foi seguido por dois PMs, de moto, e filmado parando a moto e caindo em seguida. Levara um tiro nas costas.
O secretário de Segurança explicou em nota: “Também temos que considerar a tensão policial numa perseguição de uma motocicleta que tudo indicava que estaria como fruto de um roubo”. Pessoa daquela idade, naquele bairro, que “parecia” não ter o direito de estar naquela moto, “parecia” armado. Portanto, neste caso, mais do que suspeito porque foi morto.
O terceiro caso foi o da juíza do Paraná que emitiu uma sentença de 14 anos de prisão contra um homem negro, com base neste argumento: “Sobre sua conduta social nada se sabe. Seguramente, integrante do grupo criminoso, em razão de sua raça...”.
Até aqui, como agentes da lei, pessoas claramente despreparadas para cumprir as supostas funções de que estavam investidas. Pessoas que agem contra a liberdade ou a vida de alguém com base em impressões subjetivas, preconceituosas.
Dois dos casos aparentemente são de racismo. Mas a verdade é que não o são apenas. Um deles, o de São Paulo, explicitamente não o é, mas sociologicamente é. O que vem sendo definido como racismo, no Brasil, tem peculiaridades sociais que devem ser levadas em conta para definições corretas.
A “raça” é aqui o nome de um sistema conexo de criminalizações, próprio de uma sociedade profundamente intolerante em relação a tudo e a todos. Nesses dois casos, de um negro e de um branco, a mediação incriminadora é a de estarem com objetos que não teriam o direito de ter. Ou seja, a mentalidade difundida pelas próprias polícias militares na formação de seus policiais ainda é a mesma do tempo da escravidão, em que havia objetos de brancos e objetos de pretos.
A novidade, aqui, é que essa mentalidade anômica e anômala acarreta não só a criminalização do negro, mas também a pretificação do branco para criminalizá-lo. Coisa de uma mentalidade em que a cor é cor de inferioridade social antes de ser cor de raça. A raça é adjetiva. O que se compreende, num país em que, antes da abolição, escravos estavam distribuídos por extensa escala de cor da pele, desde a pessoa propriamente negra até a pessoa suficientemente clara para passar por branca, embora fosse escrava.
Hoje, quem quer que ostente discrepâncias de apresentação pessoal no vestir, no calçar, no possuir, nos gestos, o senso comum repressivo e escravista, que persiste, imediatamente remete para o imaginário de um sistema classificatório de seres humanos em que o crime, verdadeiro ou falso, é negro.
Nesse sentido, tecnicamente, a maioria do povo brasileiro é suspeita. Nossa negritude é a da suspeição, e não a da cor da pele. Nela, mesmo o branco desprovido do conjunto de componentes próprios da brancura, é suspeito de ser negro.
Desse modo, os dois jovens vitimados pela violência, no Rio e em São Paulo, são negros. Um deles, aliás, filho de mãe branca, que verbalizou corretamente sua indignação com a discriminação do filho: ele só estará seguro se estiver junto com a mãe.
Portanto, como ser vicário de pessoa branca, mas não como cidadão de pleno direito, negro ou branco. Será sempre um ser incompleto, sociologicamente mutilado pela cor “imprópria” porque em posse de bens “impróprios”, num país em que para ser é preciso ter. E em que ter sem cara de direito a ter acaba sendo crime.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP, Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Fronteira - A degradação do Outro nos Confins do Humano" (Contexto).
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