Bolsonaro costuma dizer que não entende de Economia - o momento é oportuno para que ele deixe a questão a cargo dos especialistas
Um alinhamento incomum de fatores produziu a disparada de preços de vários alimentos. As causas dos aumentos são bem conhecidas, mas o presidente Jair Bolsonaro, em campanha eleitoral, resolveu obter ganhos políticos com a carestia setorial. Chamou os donos de supermercados para uma conversa, depois sugeriu a eles que operassem com margem perto de zero e convidou youtubers mirins para sabatiná-lo e à ministra da Agricultura, Tereza Cristina, sobre os preços da comida.
Os atos tiveram sequência ontem, com a notificação da Secretaria Nacional do Consumidor, ligada ao Ministério da Justiça, André Mendonça - candidato a uma vaga no STF e faz-tudo do presidente - para que empresas ligadas à produção e distribuição de alimentos expliquem os aumentos. A palavra mágica “preços abusivos”, até então não usada por ninguém, nem pelo presidente, surgiu na declaração de Juliana Domingues, titular da secretaria, que pretende “avaliar toda a cadeia de produção e as oscilações decorrentes da pandemia”.
Na prática, os supermercados deverão comprovar suas respostas com notas fiscais, indicando quais produtos da cesta básica tiveram maior variação no último mês, os três principais fornecedores deles e o preço médio que colocaram. A suspeita pula à frente dos fatos, que estão em todos os jornais, com as devidas explicações. Conversar com a equipe dos Ministérios da Agricultura e da Economia, a poucos passos de distância, seria mais produtivo e esclarecedor. Mas trata-se de ajudar o presidente a manter sua imagem em alta.
No túnel do tempo em que mergulha frequentemente, Bolsonaro acredita que pode obter dividendos ao flertar com campanhas que já foram desmoralizadas desde os “fiscais do Sarney”, no primeiro governo civil pós-ditadura, embora ele diga que não baixará preços com “canetadas”. A Senacom disse que multará em até R$ 10 milhões infratores que tenham realizado reajustes de preços injustificados.
O IPCA de agosto subiu para 2,44% em doze meses, enquanto que os gastos com alimentos foi de 11,39%. O IGP-DI, que considera preços no consumo e no atacado, e capta efeitos da variação do câmbio, tem números ainda mais feios para o período - 15,23%. A grosso modo, o IPCA reflete quanto da alta de preços de bens foi passível de repasse do produtor e distribuidor para o varejo. Com a economia convalescendo de uma grave recessão, o espaço para aumentos é pequeno para grande parte dos itens, mas foi grande para os alimentos.
No IPCA, o arroz subiu no ano até agosto 19,25%, o feijão preto, 28,9%, o tomate, 12,38%, a cebola 50,4%, leite e derivados, 11,28%, carnes industrializadas, 6,55% e óleo de soja, 18,63%. As variações apuradas pela FGV em período de 12 meses são ainda maiores.
Para bens exportáveis, como carnes, arroz e soja, a desvalorização cambial explica parte dos aumentos. O dólar se valorizou em 33,76% até terça-feira. O Brasil não é grande importador, mas os preços de commodities são internalizados pelo preço global, e a demanda externa foi mais um fator a jogar contra o bolso do consumidor nacional. A China está comprando muita soja e carne do Brasil e as importações chinesa, de US$ 54,5 bilhões, de janeiro a agosto (Valor, ontem), bateram recorde, assim como as vendas de carne, com alta de 19% ante agosto de 2019.
A elevada demanda externa coincidiu com uma alta demanda interna, em função do auxílio emergencial. Quem ganhava até R$ 500 mensais viu sua renda aumentar 250% e 150% os que recebiam de R$ 500 a R$ 1 mil. Boa fatia do dinheiro dos mais pobres é gasto com alimentação e muitos produtos, que chegaram a ter deflação (como é o caso até agora de cortes de carnes bovina, no ano) hoje ostentam altas superlativas.
A desvalorização do real foi a maior entre os países emergentes, impulsionada em grande medida pela fuzarca do governo Bolsonaro, de sua pouca convicção reformista e das ameaças, de dentro e de fora do governo, para acabar com a âncora fiscal do teto de gastos. Bolsonaro cobrou resposta dos supermercados, mas suas ações são parte dela.
O Brasil terá mais uma safra recorde de grãos e a pressão dos preços no mercado doméstico deve ser temporária. Se o governo criar espalhafato mal informado sobre a questão poderá estimular compras preventivas, dificultando a reacomodação dos preços. Bolsonaro costuma dizer que não entende de Economia - o momento é oportuno para que ele deixe a questão a cargo dos especialistas, e escute o que estão dizendo.
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