O silêncio habitava
o corredor de entrada
de uma meia morada
na rua das Hortas
o silêncio era frio
no chão de ladrilhos
e branco de cal
nas paredes altas
enquanto lá fora
o sol escaldava
Para além da porta
na sala nos quartos
o silêncio cheirava
àquela família
e na cristaleira
(onde a luz
se excedia)
cintilava extremo:
quase se partia
Mas era macio
nas folhas caladas
do quintal
vazio
e
negro
no poço
negro
que tudo sugava:
vozes luzes
tatalar de asa
o que
circulava
no quintal da casa
O mesmo silêncio
voava em zoada
nas copas
nas palmas
por sobre telhados
até uma caldeira
que enferrujava
na areia da praia
do Jenipapeiro
e ali se deitava:
uma nesga dágua
um susto no chão
fragmento talvez
de água primeira
água brasileira
Era também açúcar
o silêncio
dentro do depósito
(na quitanda
de tarde)
o cheiro
queimando sob a tampa
no escuro
energia solar
que vendíamos
aos quilos
Que rumor era
esse ? barulho
que de tão oculto
só o olfato
o escuta ?
que silêncio
era esse
tão gritado
de vozes
(todas elas)
queimadas
em fogo alto ?
(na usina)
alarido
das tardes
das manhãs
agora em tumulto
dentro do açúcar
um estampido
(um clarão)
se se abre a tampa.
- Ferreira Gullar, em "Muitas vozes", 1999.
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