- Valor Econômico
Questão é saber se há disposição política de seguir um caminho que tem riscos jurídicos envolvidos
Neste momento, senadores e deputados discutem alternativas que possibilitem a criação de um programa de renda básica para vigorar a partir de janeiro do próximo ano, a ampliação dos investimentos públicos, o fortalecimento necessário do SUS após a pandemia e a manutenção da desoneração da folha de salários para 17 setores da economia. Como acomodar tudo isso no Orçamento de 2021, mantendo o teto de gastos da União? A resposta simples seria cortando outras despesas. Esse caminho, no entanto, é considerado por muitos como politicamente difícil e esbarra em obstáculos constitucionais e legais.
Os parlamentares ficaram interessados em um artigo publicado na “Folha de S.Paulo”, no domingo passado. Nele, os economistas Felipe Salto, Daniel Couri, Paulo Bijos, Pedro Nery e a professora Cristiane Coelho, do IDP, sugerem que uma saída, ao menos temporária, é romper o teto de gastos, ou seja, colocar no Orçamento do próximo ano despesas em valor superior ao limite permitido, o que acionaria os gatilhos previstos na própria regra do teto, definida pela Emenda Constitucional 95. O texto foi exaustivamente lido por deputados, senadores e seus assessores nesta semana.
Toda a discussão gira em torno de dois parágrafos do artigo 107, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Um deles diz que a proposta orçamentária elaborada pelo governo precisa demonstrar o cumprimento do limite da despesa fixado para o ano. O outro estabelece que as despesas autorizadas na lei orçamentária aprovada pelo Congresso Nacional não poderão exceder os valores máximos estabelecidos pela regra do teto.
Em linguagem mais simples: o governo não pode enviar para apreciação de senadores e deputados uma proposta orçamentária que fure o teto de gastos e eles, por sua vez, não podem autorizar despesas que excedam os limites estipulados pela EC 95. Outro parágrafo proíbe a abertura de crédito suplementar ou especial que amplie o montante total de despesa autorizado.
Se não há como estimar nem autorizar despesa acima do teto, como os gatilhos de medidas de ajuste serão acionados? Esse é um problema até aqui sem solução. Para acomodar o aumento contínuo das despesas obrigatórias, o governo está sendo obrigado a cortar cada vez mais os investimentos públicos e o custeio da máquina administrativa, que está chegando a ponto de ameaçar a execução de serviços públicos essenciais - o chamado “shutdown”.
A tese central do artigo publicado na “Folha” é que não se pode fazer uma análise literal e isolada dos dois primeiros parágrafos citados aqui (3º e 4º do artigo 107 da ADCT) e esquecer o princípio do realismo orçamentário, que exige fidedignidade das estimativas de receitas e despesas públicas. “Sem projeções realistas, o Orçamento se confunde com peça de ficção”, diz o texto.
E perguntam: “O que devem fazer os Poderes Executivo e Legislativo quando as leis em vigor demandarem dispêndios superiores ao teto? Deixar de encaminhar e votar o PLOA? Maquiar a estimativa de gastos de modo a fazê-los caber no limite?”. Para os autores, a resposta a essas perguntas é negativa. “A interpretação literal dos parágrafos 3º e 4º do artigo 107 do ADCT, ao eventualmente forçar a elaboração de um Orçamento que não seja crível, fornece uma solução inadequada para o problema”, diz o artigo.
A chave para a interpretação correta, na opinião dos autores, é desvendar a sanção relacionada a sua violação. Eles observam que a sanção para a previsão de despesas orçamentárias superiores ao teto de gastos não é a imputação de crime de responsabilidade do presidente da República, “mas sim o conjunto de vedações previstas no referido artigo, relacionadas à criação ou majorações de gastos obrigatórios”.
Os autores ressaltam ainda que o acionamento dos gatilhos pela via do planejamento orçamentário seria solução fiscalmente mais responsável que pela via da execução orçamentária. “Ao se reconhecer ruptura do teto no próprio Orçamento, medidas de ajuste seriam colocadas em prática no mesmo ano, e não apenas no exercício seguinte, quando os excessos já teriam ocorrido e estariam possivelmente consolidados.”
A equipe econômica pensa diferente. Considera que há um problema real na EC 95, que impede o acionamento das medidas de ajuste e que para cumprir a regra do teto nas condições atuais, em que as despesas obrigatórias não param de crescer, só resta ao governo cortar investimentos e o custeio. E, mantida a atual redação da EC 95, isso seria feito até que as despesas discricionárias fossem reduzidas a zero, o que paralisaria toda a administração pública federal.
A solução apresentada pela equipe do ministro Paulo Guedes é a aprovação da PEC do Pacto Federativo (PEC 188/2019), que corrige a regra do teto de gastos, facilitando o disparo dos gatilhos. Pela proposta, as medidas seriam acionadas quando as despesas obrigatórias chegassem a 95% da despesa primária total. Essa PEC não andou até agora.
A proposta orçamentária de 2021 será agora analisada pelos parlamentares. Eles podem ou não acolher a tese do artigo. Existem pelo menos duas críticas importantes sendo feitas à proposta por consultores do Congresso. A primeira é que o caminho apontado é uma interpretação da EC 95, que estará sujeita a questionamentos na Justiça. A segunda crítica é como definir qual será o valor do “estouro” do teto. Se ele for muito alto, mesmo com o disparo dos gatilhos das medidas não será possível ajustar as contas da União tão cedo, e o teto estará condenado.
Os mesmos consultores disseram ao Valor que só há uma forma de romper o teto de gastos, de acordo com as normas atuais. O parágrafo 10º do artigo 107 da ADCT estabelece que, para fins de verificação do cumprimento do limite de despesa, serão consideradas as despesas primárias pagas, incluídos os restos a pagar (RAPs) de exercícios anteriores pagos. Ou seja, durante a execução orçamentária, o governo poderá pagar um montante de tal ordem de RAPs, que o teto seria rompido, acionando os gatilhos. A questão é saber se há disposição política de seguir esse caminho, pois há riscos jurídicos envolvidos.
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