Concentrada nos alimentos, alta dos preços recente tem impacto maior nas famílias de baixa renda, que destinam parcela maior do orçamento à comida
Cássia Almeida e Carolina Nalin* | O Globo
RIO - A inflação da pandemia está corroendo o poder de compra dos mais pobres, mas afeta muito pouco os mais ricos.
Concentrada em itens básicos como arroz, feijão, carne, ovos, leite e farinha de trigo, a alta de preços recente tem impacto forte em lares de renda baixa, que destinam fatia maior do orçamento à alimentação. Por outro lado, serviços mais buscados pelas classes altas estão mais baratos.
Desagregação por faixa de renda feita pela economista Maria Andreia Parente, do Ipea, no Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) constatou que a inflação acumulada no ano até julho em domicílios com renda familiar de até R$ 1.650,50 é de 1,15%.
Já em lares com rendimento acima de R$ 16.509,66, o custo de vida ficou estável no período: leve variação de 0,03%.
A explicação está na diferença entre as cestas de consumo das famílias nos extremos da distribuição de renda. O que os mais pobres compram ficou mais caro e o que os ricos mais consomem ficou mais barato.
O grupo alimentação e bebidas leva 25,8% dos recursos dos domicílios mais pobres. Nos de alta renda, essa proporção cai para menos da metade: 12,3%.
A alimentação no domicílio subiu, em média, 6,1% este ano. O arroz, por exemplo, subiu quase 20%. Já a educação privada, com descontos das escolas sem aulas presenciais, ficou 3,47% mais barata em agosto. Nos lares mais pobres, educação é 4,1% das despesas. Nas mais ricas, o dobro.
Trajetórias separadas
A pandemia abriu um espaço entre a inflação da base e a do topo da pirâmide de renda, que andavam juntas até fevereiro.
No último mês antes da chegada do coronavírus ao Brasil, a inflação de famílias de renda baixa ficara em 3,29% no acumulado em 12 meses. A das de renda alta era 3,07%. Em julho, esse índice ficou em 2,94% para os mais pobres e 1,73% para os mais ricos.
—A inflação de agosto já mostra aceleração ainda maior dos alimentos. Provavelmente esse gap entre pobres e ricos deve continuar, vista a alta dos alimentos e a queda do preço de serviços — prevê Maria Andreia, que divulga hoje indicadores por faixa de renda do Ipea relativos a agosto.
A alta recente de preços afetou itens de difícil substituição, como arroz, feijão, carnes, leite, ovos. Não é uma “inflação do iogurte, do requeijão”, que possibilita trocar por outra coisa, lembra Maria Andreia:
— São itens de primeira necessidade, o grosso do consumo dos mais pobres.
A disparada no preço de alimentos está ligada ao aumento das exportações de produtos agrícolas, incentivadas pelo dólar alto, à entressafra de alguns itens e à maior demanda das famílias com a quarentena e o pagamento do auxílio emergencial de R$ 600, que agora será reduzido à metade.
Economistas, porém, são unânimes na avaliação de que qualquer tentativa de controle de preços pelo governo não é a saída para o problema.
— Controle de preços é o pior do pior, cria mercado paralelo imediatamente — diz a economista Sonia Rocha, especialista em pobreza e desigualdade. — Estamos fartos de ver isso, já deveríamos ter aprendido. Já aconteceu mil vezes e não funciona.
Mãe de dois filhos, Sandra Teixeira vai cortar compras. Ela depende do auxílio emergencial, que vai ser reduzido a R$ 300 até o fim do ano justamente no momento em que a comida está mais cara e o desemprego segue em alta.
Moradora do Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio, ela recebeu alimentos de um mutirão comunitário, mas a ajuda acabou há dois meses. A dona de casa se diz insegura:
— Enquanto recebíamos a cesta básica, o dinheiro do auxílio estava servindo para comprar uma carne e pagar luz e gás. Não sei como vai ser. Já costumava ir a pé ao mercado para economizar a passagem, mas agora vou cortar o máximo possível da alimentação.
O Dieese apontou alta da cesta básica em 13 das 17 capitais que pesquisa. Diretor técnico da instituição, Fausto Augusto Junior diz que, em momentos como este, os mais pobres tendem a cortar a carne.
—É substituída pelo ovo.
Sem perspectiva de queda da cesta básica, que pelo Dieese vai de R$ 440 a R$ 540, dependendo da região, a fisioterapeuta Danielle Aparecida, que tem três filhos, mudou a dieta da família para conter a conta do supermercado:
— Precisa criatividade para os filhos não sofrerem tanto impacto. Compro menos arroz, café e leite e mais verduras, legumes e frutas, como laranja e limão, para fazer sucos em vez de tomar tanto leite. O queijo dobrou de preço, e deixei de comprar.
Preços seguirão em alta
A diferença do impacto da inflação entre ricos e pobres fica mais evidente ao ver o peso no orçamento dos cinco produtos que mais sobem.
Arroz, feijão preto, carnes, leite e óleo consomem 6,3% nas despesas de quem ganha até R$ 1.650,50. Essa parcela é de 1,5% na faixa acima de R$ 16.509,66 .
Nos cálculos de André Braz, economista da FGV, esses produtos representam 4,41% dos gastos de domicílios com renda de até 2,5 salários mínimos. Em geral, a média entre as famílias do país é de 3,04%.
— Com isso, a alimentação no domicílio para os mais pobres subiu quase 10% (no ano até agosto)— diz Braz.
A pressão deve continuar, diz Márcio Milan, economista da Tendências. Ele prevê que a alta da alimentação no domicílio em 12 meses subirá para até 13,9% em outubro, recuando para 9,4% no fim do ano, mas sem devolução nos preços.
Isso significa que o valor de grãos, carnes, leite e derivados mudou de patamar, só vai parar de subir. Legumes e frutas costumam baratear após forte alta, ele diz.
*Estagiária sob supervisão de Janaina Lage
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