- O Globo
Se pecado há, é o ódio contra as mulheres
Criança, estudei na escola pública. Boas notas me permitiram hastear a bandeira do Brasil enquanto cantávamos o Hino Nacional. Honra de que me orgulhava.
Ocupo na Academia Brasileira de Letras a cadeira que tem Evaristo da Veiga como patrono. Na contracapa dos cadernos escolares aprendi com ele, na letra do Hino da Independência, que os brasileiros eram uma brava gente. Acreditei e acredito. “Longe vá temor servil” sempre me pareceu uma boa divisa.
Ofende-me e revolta ver hoje uma escória, embrulhada na nossa bandeira, enxovalhando nossos símbolos, como se a eles pertencesse a pátria. Não pertence. A pátria e seus símbolos pertencem a todos os brasileiros.
Era gente dessa laia os que foram vociferar na porta de um hospital em que uma menina de 10 anos, grávida de um estupro perpetrado pelo tio, interrompia a gravidez, como lhe assegura a lei brasileira e a mais elementar lei moral.
Uma mulher, cujo nome não escrevo por asqueroso, revelou a identidade da menina e o endereço do hospital. Envoltos na bandeira do Brasil, invocando o nome de Deus, chamavam a menina de assassina.
Que Deus é esse? Não é o Deus do cristianismo que irrigou minha infância. Dele guardei a esperança e a caridade, o sentido profundo da compaixão. O deus deles é odiento, afronta todas as religiões em que Deus é amor. Se pecado há, é o ódio contra as mulheres. A agressão a essa menina, um segundo estupro, crime e covardia.
Como se não bastasse, a portaria 2.282 do Ministério da Saúde vem agora impor infindáveis burocracias cujo objetivo é violentar o espírito da lei e inviabilizar o exercício do direito à interrupção da gravidez em caso de estupro. Suprema perversidade, oferece à vítima a possibilidade de ver o feto em ultrassom. É imperativo que o Congresso, senão ele a Justiça, impeça mais essa crueldade contra as mulheres. Se a portaria já estivesse em vigor, teriam oferecido mostrar a ultra a essa criança de 10 anos? E a tantas outras, violentadas como ela?
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