segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Populismo e pandemia – Editorial | O Estado de S. Paulo

A pandemia de covid-19 conteve o avanço de líderes nacionalistas populistas

É muito cedo para nutrir a esperança de que o populismo tecnológico de corte nacionalista que grassou em determinados países a partir da segunda metade da década de 2010, inclusive nas duas maiores democracias das Américas, os Estados Unidos e o Brasil, esteja com os dias contados. Porém, é possível afirmar que a pandemia de covid-19, definitivamente, não foi um acontecimento benéfico para a maioria dos tecnopopulistas, especialmente para os presidentes dos dois países citados, Donald Trump e Jair Bolsonaro.

De uma maneira geral, tem-se a pandemia como um fator propiciador do cerceamento de liberdades tipicamente democráticas porque os cidadãos, em nome da proteção coletiva, estariam mais propensos a abrir mão de algumas liberdades individuais. Uma concessão dessas nas mãos de um nacional-populista autoritário é um prato cheio. Que o diga o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán. No entanto, nem Trump nem Bolsonaro têm conseguido “aproveitar” a crise gerada pelo novo coronavírus para fazer avançar suas pautas antidemocráticas na toada em que provavelmente gostariam. Tanto melhor para os seus governados.

Isso pode ser explicado pela luz que a pandemia de covid-19 jogou sobre a incompetência administrativa dos líderes de viés populista, pouco afeitos ao trabalho que dá governar um país, menos ainda um país assolado por uma crise dessa magnitude.

O cientista político Ivan Krastev questiona em um artigo para o jornal The New York Times, publicado pelo Estado, por que líderes como Donald Trump e Jair Bolsonaro “odeiam” uma crise que, ao contrário, “deveriam amar”. Ele mesmo responde: “Líderes autoritários só desfrutam das crises que eles fabricam”.

Um traço distintivo dos populistas em geral, e ainda mais dos tecnopopulistas, que usam e abusam do alcance provido pelas redes sociais, é a exploração constante do sentimento de medo dos cidadãos. Não sem razão, a todo momento criam “inimigos” imaginários com a mesma desenvoltura e crença com que uma criança cria os seus “amigos invisíveis”. Mas diante de uma ameaça real – o novo coronavírus –, que impõe a ação concreta do governo, falham por absoluta incompetência.

A pandemia também reforçou entre os cidadãos a necessidade de buscar informações oriundas de fontes confiáveis. De modo geral, fortaleceram-se a imprensa profissional e as entidades científicas. Tecnopopulistas como Trump e Bolsonaro têm aversão aos fatos quando estes contrariam as narrativas que querem impor. Tanto um como outro elegeram os jornalistas como seus principais “inimigos”, quando não os “inimigos do povo”.

Thomas Kleine-Brockhoff, vice-presidente do escritório de Berlim do German Marshall Fund (GMF), analisou os impactos da pandemia de covid-19 sobre o desempenho de governantes populistas em artigo recente, publicado pela instituição. Tida como fator catalisador de tendências já alinhavadas desde antes do surgimento da doença, a crise do novo coronavírus, no caso dos populistas, teve efeito contrário. “A política da pandemia”, escreveu Thomas Kleine-Brockhoff, “parece ter desacelerado, e não acelerado, a ascensão global de nacionalistas populistas. Seus argumentos estão cada vez mais rasos. Seus índices de popularidade estão caindo. De repente, suas vitórias eleitorais parecem mais difíceis de serem obtidas.”

É claro que Trump pode ser reeleito presidente dos Estados Unidos em novembro. Mas uma vitória que era dada como certa antes da eclosão da pandemia, em março, já não se afigura tão garantida como antes. Jair Bolsonaro viu sua popularidade crescer na crise, mas não é improvável que essa melhora de percepção sobre seu desempenho esteja mais relacionada a questões circunstanciais, como o pagamento do auxílio emergencial para 65 milhões de brasileiros, do que a um tardio despertar da sociedade sobre as suas grandes qualidades de estadista.

Lá e cá, o povo não é bobo.

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