segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Renda Brasil e teto de gastos, um conflito crescente – Editorial | Valor Econômico

Com as restrições colocadas pelo presidente, está cada vez mais difícil que o Renda Brasil fique de pé sem que o teto de gastos seja derrubado

Poucas semanas depois de anunciar o veto ao uso do abono salarial para compor o Renda Brasil, o presidente Jair Bolsonaro atacou novamente. Com a cabeça cada vez mais direcionada para a ainda distante eleição de 2022, o chefe de governo anunciou na noite da última quinta-feira que não permitirá que os recursos do seguro-defeso sejam redirecionados para compor o novo programa em construção, que pretende ser a marca social de seu governo.

É verdade que o defeso, pago para os trabalhadores não pescarem no período de reprodução dos peixes, não representaria um grande reforço de caixa para o Renda Brasil. Seu orçamento tem oscilado nos últimos anos em cerca de R$ 2,5 bilhões, beneficiando quase 650 mil pessoas. Enquanto isso, o abono salarial é pago para mais de 20 milhões de pessoas e tem orçamento da ordem de R$ 18 bilhões por ano.

Ou seja, esse programa, que paga até um salário mínimo para os trabalhadores formais que ganham até duas vezes o piso do país, teria um poderio muito maior de alavancar o sucessor do Bolsa Família, sem comprometer o teto de gastos, do que o auxílio para os pescadores.

Ao vetar a proposta do abono, Bolsonaro justificou que não iria tirar do pobre para dar ao paupérrimo. Essa lógica, aliás, foi a mesma que derrubou tentativas anteriores (como na última reforma previdenciária) de extinguir esse benefício, criado ainda no regime militar, quando o Brasil estava distante de ter uma rede de proteção social digna desse nome. E é o mesmo argumento que está tirando de cena o seguro-defeso e outros programas que também estavam na mira da equipe econômica, como o Farmácia Popular.

Nesse cenário, vai ficando cada vez mais difícil de compatibilizar a intenção manifesta de Bolsonaro de fazer um super programa social focalizado nos mais pobres, que pague R$ 300 em média - um crescimento substancial sobre os cerca de R$ 190 reais médios do bolsa família -, com o escasso espaço fiscal dado pelo limite constitucional de despesas.

A realidade é que, com os vetos já previamente dados pelo presidente, ficou complicado até para se chegar no piso de R$ 250 de benefício médio, que vinha sendo mencionado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. Mais distante ainda se for considerada a intenção de ampliar de 14 milhões, público atual do Bolsa Família, para mais de 20 milhões de pessoas a serem atendidas pelo novo programa social.

Nesse contexto matemático-orçamentário tão complexo, os técnicos do governo buscam novas alternativas. Por isso, como mostrou o Valor na última sexta-feira, a equipe econômica passou a discutir a possibilidade de ampliar o alcance da proposta de desindexação do orçamento. A ideia seria incluir na PEC do Pacto Federativo, cuja nova versão está sendo redigida, a possibilidade de não repor nem a inflação no valor do salário mínimo, o que abriria um espaço fiscal estimado pelos técnicos do governo em R$ 57 bilhões em dois anos pelo congelamento nominal principalmente das despesas previdenciárias.

A sugestão, contudo, está em estágio preliminar e ainda não tem consenso nem mesmo dentro do time de Paulo Guedes, que sabe do seu potencial de polêmica. Além disso, teria que ter a concordância de Bolsonaro e do senador Márcio Bittar (MDB-AC), relator da PEC e que tem trabalhado em conjunto com o time de Guedes, antes de ser apresentada para o Congresso, onde precisará de apoio de 3/5 dos parlamentares. Ou seja, a ideia já nasce com mais chance de morrer do que de avançar.

Assim, a construção do Renda Brasil, em meio a uma extremamente precária situação fiscal, está explicitando os limites orçamentários do país e a enorme dificuldade de se harmonizar política e economia.

O teto de gastos é um instrumento que colocou freio na trajetória de despesas crescentes do setor público em níveis insustentáveis, que acabaram por fragilizar o país. A despeito das suas evidentes limitações e necessidade de ajustes para maior eficiência da política fiscal, o mecanismo tem sido útil e contribuído para sustentar juros estruturalmente mais baixos no país.

Com o desejo de ter um programa de renda mínima com a marca do seu governo e fortalecer suas chances de reeleição ao mesmo tempo em que sistematicamente trava propostas de remanejamento de recursos dentro do Orçamento, Bolsonaro fomenta a incerteza fiscal.

Com as restrições colocadas pelo presidente, está cada vez mais difícil que o Renda Brasil fique de pé, com um tamanho relevante, sem que o teto de gastos seja derrubado.

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