terça-feira, 13 de outubro de 2020

Carlos Andreazza - O padrinho faz o currículo

- O Globo

Aí está Dias Toffoli para encarnar o precedente exemplar

Sabe-se — informaram-nos os senadores Ciro Nogueira, Flávio Bolsonaro e Renan Calheiros — que o presidente da República não indicou Kassio Nunes Marques ao Supremo pela qualidade de seu curriculum vitae. Informou-nos também a respeito o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, dependente do aval do STF para avançar no golpe — contra a Constituição — que lhe permitiria concorrer à reeleição, também ele um dos graúdos que, com foro e interesses naquele tribunal, apadrinham Marques; a quem, no entanto, deve-se fazer justiça. Não terá sido o primeiro escolhido assim; por virtudes outras que não derivadas do tal notório conhecimento jurídico. Aí está Dias Toffoli para encarnar o precedente exemplar.

Sejamos, porém, igualmente justos com Toffoli, indicado pelo currículo, o real, que tinha — ou: indicado pelo que era, apesar do currículo. Tempos românticos — dirá o cínico. Aqueles, tempos raiz, em que um agente político ganhava a toga por ser agente político, com missão dada (e logo a ser traída), sem precisar se inflar de pós-graduações cumpridas em cinco dias.

Ou, talvez, tempos em que a transparência não era uma cultura estabelecida — imposta mesmo — pelo avanço da tecnologia. Parece mais difícil enganar hoje; donde o cético se vê obrigado a questionar se não terá sido sempre desta maneira, séculos de currículos fraudados e protegidos por raros e modestos mecanismos de acesso à informação. Neste caso, estando correto o desconfiado (ele costuma estar certo no Brasil), faria água a ideia de que a liquefação da verdade — o processo, em pleno curso, de desmaterialização dos fatos — chegara até ao pobre currículo; essa velha afirmação, ato de crença na palavra, da história individual... Mas já divago.

Vamos ao fato. Um raro fato ainda não tornado versão: o currículo do ora desembargador federal Kassio Nunes Marques nem pôde ser examinado. Refiro-me a um currículo — rico ou pobre — que não seja obra de ficção. Não ao currículo farsante de uma autoridade contra cuja dissertação de mestrado — a cada enxadada, uma minhoca — há a acusação, bastante carnuda, de plágio. E é esse senhor — mesmo diante de tudo quanto se levanta — que Jair Bolsonaro empurra para quase 30 anos de STF. Esse senhor: indivíduo que tira de uma imaginação pobre para dar a um currículo paupérrimo. (Não sou eu, por favor, quem classifica o CV do doutor como miserável; mas ele próprio — o inchamento artificial da peça sendo a admissão da pindaíba.)

O episódio — a maneira indecorosa como processo se dá, minimizando, ignorando mesmo, a exposição da fraude curricular — é eloquente de como ter padrinho basta no Brasil patrimonialista; em cujo corpo, registre-se, Bolsonaro constituiu bem-sucedida empresa familiar. Consagração que faltou — quem se lembra? — a Carlos Alberto Decotelli, nomeado ministro da Educação, mas ceifado em decorrência de haver recorrido ao mesmo expediente do currículo criativo. Qual a diferença?

Leia-se o início da nota divulgada pela assessoria de Marques — obra-prima da distorção de valores: “Além da formação em Direito, não há requisitos mínimos acadêmicos para a posição de desembargador federal ou para a indicação ou nomeação de ministro do STF. A apresentação de um currículo, portanto, é um ato de boa fé, possibilitando à sociedade conhecer as áreas de interesse e especialização do servidor público”.

Ninguém ora questiona o cumprimento de requisitos formais nem qualquer indigência curricular, mas tão somente a difusão de um currículo falso. Se apresentar o documento — verdadeiro — seria, segundo Marques, ato de boa-fé, como definir o expediente de divulgar um fraudado?

Estamos, pois, num lugar anterior; numa fase decisivamente anterior àquela em que Toffoli, então advogado-geral da União apontado para o Supremo, teve sua miúda formação escrutinada pela sociedade. Quem dera — devaneará o sonhador conformado — estivéssemos discutindo, na página das exigências constitucionais para um ministro de corte constitucional, sobre o saber jurídico de Marques...

Não estamos. Mas estamos, sim, na página das (poucas) exigências constitucionais para um ministro de corte constitucional. Daí por que pergunto, sendo generoso no verbo: alguém — ademais um desembargador federal — que manipula o currículo tem reputação ilibada? Hein?

Essa, sonhará o delirante, deveria ser a questão fundadora — a pedra fundamental — da sabatina de Marques no Senado. Para tanto, porém, num ato de ineditismo, os senadores teriam de transformar o que conduzem, historicamente, como reunião de confrades em pleno exercício do equilíbrio impessoal entre Poderes — com o que também, implicará o cínico, fundariam um pouquinho de República entre nós.

Não fundarão.

Por fim, não sem uma nota de humor, registro a passagem curiosa em que consiste observarmos a última esperança do reacionarismo bolsonarista — por ver cair a indicação de um tipo “pouco conservador” — depender do trabalho do jornalismo profissional.

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