Aí
está Dias Toffoli para encarnar o precedente exemplar
Sabe-se
— informaram-nos os senadores Ciro Nogueira, Flávio Bolsonaro e Renan Calheiros
— que o presidente da República não indicou Kassio Nunes Marques ao Supremo
pela qualidade de seu curriculum
vitae. Informou-nos também a respeito o presidente do Senado, Davi
Alcolumbre, dependente do aval do STF para avançar no golpe — contra a
Constituição — que lhe permitiria concorrer à reeleição, também ele um dos
graúdos que, com foro e interesses naquele tribunal, apadrinham Marques; a
quem, no entanto, deve-se fazer justiça. Não terá sido o primeiro escolhido
assim; por virtudes outras que não derivadas do tal notório conhecimento
jurídico. Aí está Dias Toffoli para encarnar o precedente exemplar.
Sejamos,
porém, igualmente justos com Toffoli, indicado pelo currículo, o real, que
tinha — ou: indicado pelo que era, apesar do currículo. Tempos românticos —
dirá o cínico. Aqueles, tempos raiz, em que um agente político ganhava a toga
por ser agente político, com missão dada (e logo a ser traída), sem precisar se
inflar de pós-graduações cumpridas em cinco dias.
Ou,
talvez, tempos em que a transparência não era uma cultura estabelecida —
imposta mesmo — pelo avanço da tecnologia. Parece mais difícil enganar hoje;
donde o cético se vê obrigado a questionar se não terá sido sempre desta
maneira, séculos de currículos fraudados e protegidos por raros e modestos
mecanismos de acesso à informação. Neste caso, estando correto o desconfiado
(ele costuma estar certo no Brasil), faria água a ideia de que a liquefação da
verdade — o processo, em pleno curso, de desmaterialização dos fatos — chegara
até ao pobre currículo; essa velha afirmação, ato de crença na palavra, da
história individual... Mas já divago.
Vamos
ao fato. Um raro fato ainda não tornado versão: o currículo do ora
desembargador federal Kassio Nunes Marques nem pôde ser examinado. Refiro-me a
um currículo — rico ou pobre — que não seja obra de ficção. Não ao currículo
farsante de uma autoridade contra cuja dissertação de mestrado — a cada
enxadada, uma minhoca — há a acusação, bastante carnuda, de plágio. E é esse
senhor — mesmo diante de tudo quanto se levanta — que Jair Bolsonaro empurra
para quase 30 anos de STF. Esse senhor: indivíduo que tira de uma imaginação
pobre para dar a um currículo paupérrimo. (Não sou eu, por favor, quem
classifica o CV do doutor como miserável; mas ele próprio — o inchamento
artificial da peça sendo a admissão da pindaíba.)
O
episódio — a maneira indecorosa como processo se dá, minimizando, ignorando
mesmo, a exposição da fraude curricular — é eloquente de como ter padrinho
basta no Brasil patrimonialista; em cujo corpo, registre-se, Bolsonaro
constituiu bem-sucedida empresa familiar. Consagração que faltou — quem se
lembra? — a Carlos Alberto Decotelli, nomeado ministro da Educação, mas ceifado
em decorrência de haver recorrido ao mesmo expediente do currículo criativo.
Qual a diferença?
Leia-se
o início da nota divulgada pela assessoria de Marques — obra-prima da distorção
de valores: “Além da formação em Direito, não há requisitos mínimos acadêmicos
para a posição de desembargador federal ou para a indicação ou nomeação de
ministro do STF. A apresentação de um currículo, portanto, é um ato de boa fé,
possibilitando à sociedade conhecer as áreas de interesse e especialização do
servidor público”.
Ninguém
ora questiona o cumprimento de requisitos formais nem qualquer indigência
curricular, mas tão somente a difusão de um currículo falso. Se apresentar o
documento — verdadeiro — seria, segundo Marques, ato de boa-fé, como definir o
expediente de divulgar um fraudado?
Estamos,
pois, num lugar anterior; numa fase decisivamente anterior àquela em que
Toffoli, então advogado-geral da União apontado para o Supremo, teve sua miúda
formação escrutinada pela sociedade. Quem dera — devaneará o sonhador
conformado — estivéssemos discutindo, na página das exigências constitucionais
para um ministro de corte constitucional, sobre o saber jurídico de Marques...
Não
estamos. Mas estamos, sim, na página das (poucas) exigências constitucionais
para um ministro de corte constitucional. Daí por que pergunto, sendo generoso
no verbo: alguém — ademais um desembargador federal — que manipula o currículo
tem reputação ilibada? Hein?
Essa,
sonhará o delirante, deveria ser a questão fundadora — a pedra fundamental — da
sabatina de Marques no Senado. Para tanto, porém, num ato de ineditismo, os
senadores teriam de transformar o que conduzem, historicamente, como reunião de
confrades em pleno exercício do equilíbrio impessoal entre Poderes — com o que
também, implicará o cínico, fundariam um pouquinho de República entre nós.
Não
fundarão.
Por fim, não sem uma nota de humor, registro a passagem curiosa em que consiste observarmos a última esperança do reacionarismo bolsonarista — por ver cair a indicação de um tipo “pouco conservador” — depender do trabalho do jornalismo profissional.
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