O
Brasil avançou no arcabouço legal, com as leis Maria da Pena e do Feminicídio.
Mas ainda deve o compromisso inegociável de pôr fim à violência de gênero
A
pandemia que escancarou desigualdades sociais históricas também tirou das
sombras o ambiente de violência de gênero que acossa as brasileiras. O
confinamento doméstico indicado como prevenção ao novo coronavírus trouxe como
colateral uma escalada de abuso e assédio, agressão e assassinato. Dados
alarmantes foram apresentados ao país numa indispensável edição extraordinária
do Anuário Brasileiro da Segurança Pública, que acompanhou o rastro das
ocorrências no primeiro semestre, pico do isolamento social. Não são novidades
a brutalidade contra meninas, jovens e mulheres nem a tolerância social que a
cerca. O que 2020 trouxe de anormal foram a incidência galopante durante a mais
grave crise sanitária em um século, a indignação de setores da sociedade e a
indiferença de um governo atracado à necropolítica.
O
conceito estruturado pelo filósofo e historiador Achille Mbembe comporta a
banalização da morte expressa nos homicídios que, no Brasil, e no
encarceramento em massa, que alcançam sobretudo jovens negros de áreas
periféricas; na criminalização da pobreza, no racismo. Também é necropolítica
quando desemprego, insegurança alimentar, habitação precária, trabalho
insalubre e mal remunerado, escassez de saneamento, atenção à saúde e
mobilidade urbana se abatem sobre a metade mais pobre, mais preta, menos escolarizada
da população. É necropolítica quando o presidente da República, como fez Jair
Bolsonaro, usa vacina como instrumento de desinformação, xenofobia e disputa
política rasteira, em lugar de respeito à ciência e promessa de vida.
É
necropolítica quando, cientes do risco de aumento da violência de gênero,
autoridades não agem. Nos primeiros meses do isolamento social sugerido pela
Organização Mundial da Saúde, a ONU Mulheres alertou para o risco de aumento da
violência doméstica mundo afora. O aviso veio acompanhado de uma série de
recomendações para enfrentar as agressões, entre elas reforço nos serviços de
atendimento remoto, rede de apoio em supermercados, em farmácias, criação de
abrigos temporários para abrigar mulheres, adolescentes e crianças vítimas.
Em
artigo no Anuário 2020, as pesquisadoras Amanda Pimental (PUC-Rio) e Juliana
Martins (USP) informam que o governo brasileiro preferiu divulgar canais de
denúncia e recomendações gerais de proteção à mulher, em vez de investir em
ações concretas: “quando comparamos a medidas adotadas por outros países, vemos
que no Brasil as iniciativas divulgadas não foram suficientes para combater a
violência doméstica”. O Estado falhou, portanto.
As
pesquisadoras identificaram sete iniciativas implementadas em cinco países para
frear a violência de gênero durante a pandemia. Apenas uma chegou ao Brasil.
França, Espanha, Itália e Argentina transformaram quartos de hotéis em abrigos
temporários para mulheres em situação de violência, ação social com efeito
econômico. Aqui, uma robusta rede hoteleira ficou às moscas durante a pandemia
que aniquilou a atividade turística. O Ministério da Mulher, da Família e dos
Direitos Humanos preferiu se ocupar de cercear o direito ao aborto legal de uma
menina de 10 anos que engravidou de um tio, após quatro anos seguidos de
estupros.
Na
França, na Espanha e na Argentina, supermercados e farmácias transformaram-se
em centros de aconselhamento e acolhimento. No país vizinho, funcionários foram
orientados a buscar assistência sempre que uma mulher pedisse no balcão uma
máscara vermelha, senha para violência doméstica. Autoridades entenderam que,
para as vítimas, seria mais fácil chegar aos pontos comerciais do que a
delegacias. Também na França, houve aporte adicional de recursos financeiros
para organizações da sociedade civil atuantes no enfrentamento às agressões de
gênero.
Na
Espanha, no Uruguai e na Argentina, serviços de atendimento à mulher foram
considerados essenciais e seguiram em funcionamento. No Brasil, o único esforço
empreendido pelo poder público federal foi a expansão dos canais de denúncia,
incluindo telefone e aplicativo. Em alguns estados, entre os quais Rio de
Janeiro e Bahia, o patrulhamento policial em áreas de incidência foi mantido ou
reforçado.
Sem
a devida estrutura de apoio, o Brasil da pandemia contabilizou redução nos registros
de agressões e abusos, aumento em homicídios dolosos e feminicídios. O anuário
encontrou 110.791 casos de lesão corporal dolosa contra mulheres no primeiro
semestre deste ano, queda de 9,9% sobre o mesmo período de 2019. Ameaças
somaram 238.174 (-15,8%); estupros 22.201 (-22,2%). De março a maio, também
caiu o total de medidas protetivas determinadas pelo Judiciário. “Observamos
queda nos registros dos crimes que dependiam principalmente da presença física
da vítima nas delegacias, em especial os de estupro, que demandam também exame
pericial”, escreveram as pesquisadoras.
São
indicadores que sugerem, não diminuição da violência, mas dificuldade das
vítimas em denunciar, uma vez que delegacias e tribunais restringiram
atendimento presencial durante a pandemia. Não é qualquer vítima que, confinada
com o agressor, consegue sair em busca de ajuda ou formalizar denúncia via
internet. O resultado foi o aumento da violência letal. De janeiro a março,
alta de 0,8% nos homicídios dolosos de mulheres e de 1,2% nos casos tipificados
como feminicídio. Foram 1.861 assassinatos, 648 por questões de gênero. As
ligações para o serviço 190 relacionadas à violência doméstica aumentaram 3,8%.
Em seis meses, houve 147.379 chamadas em apenas 11 estados.
O Brasil avançou no arcabouço legal, com as leis Maria da Pena e do Feminicídio. Mas ainda deve às mulheres o compromisso inegociável de pôr fim à violência de gênero. Isso se faz com políticas públicas de educação, acolhimento e combate à impunidade. Nada fácil num ambiente político que só produz ódio, preconceito e morte.
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