Politização
da vacina pode ser barrada no STF
A
não ser que o presidente desmanche com o cotovelo o que escreve com a mão, Jair
Bolsonaro talvez tenha contratado uma derrota ao proclamar que rejeita vacinas
contra a covid-19 oriundas da China ou que possam de um modo ou outro
beneficiar o tucano João Doria.
O
problema por ora não existe, por ainda não existirem vacinas. Mas na hora que
se chegar a elas, é quase impossível impedir, dosar, ou retardar, ou direcionar
politicamente a vacinação em massa da população brasileira.
Horas
depois de Bolsonaro desautorizar seu ministro da Saúde, governadores avisaram
que, no limite, quem vai decidir a questão é o Supremo Tribunal Federal. A
julgar pelo retrospecto de decisões do STF sobre pandemia e sobre saúde
pública, é provável que Bolsonaro se depare com uma ordem do Judiciário para
que a União compre toda e qualquer vacina de eficácia comprovada pela Anvisa
para o programa nacional de imunizações.
Em
16 de abril, o STF decidiu, por exemplo, que Estados e municípios podiam
estabelecer normas próprias para a pandemia, impedindo que o presidente
forçasse o comércio a reabrir contra a vontade dos governos regionais. Não foi
uma votação apertada, foi por unanimidade.
Pode-se
argumentar que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) estaria
aparelhada ideologicamente pela extrema-direita e irá recusar a autorização do
uso no Brasil da Coronavac por motivos de ordem política. Em se tratando de
Bolsonaro nada pode ser descartado, mas como órgão técnico, a Anvisa precisa
dar uma justificativa técnica. Qual seria? É uma questão que os bolsonaristas
precisam responder antes de dar o seu golpe da caneta.
Conspiram
contra a politização do tema as consequências que o país sofreria caso a
vacinação se torne parte da guerra cultural, e essa é a força do argumento dos
governadores.
Um
risco é o que o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), chama de “cenário
hobbesiano”: a Anvisa autoriza a Coronavac, o governo não compra a vacina, e
cada governador vai à luta, ombro a ombro com o setor privado, em uma distópica
guerra de todos contra todos. “Isso significa que os critérios para compra não
serão uniformes e os problemas que existiram para a aquisição de respiradores
podem se replicar para garantir o acesso à vacina”, disse.
A
ausência do Ministério da Saúde no processo de capacitação do sistema público
para poder atender os enfermos, como se sabe, rebaixou a tomada de decisão para
Estados e municípios e abriu a porta para o descontrole: houve até importadoras
de vinhos comprando respiradores, entre outras aberrações. Com a vacina, o
descontrole pode ganhar escala geométrica.
Se
a Anvisa não autorizar a Coronavac por problemas políticos, pode ser instalada
uma crise entre China e Brasil, na visão do governador da Bahia, Rui Costa
(PT). “A economia brasileira, o nosso agronegócio, é capaz de suportar uma
retaliação chinesa?”, indaga o petista.
Caso
a vacinação brasileira atrase em comparação com o processo de outros países, o
Brasil dependerá da imunização de rebanho para sair da pandemia e ficará para
trás. Estará desguarnecido quando vier a segunda onda de contaminação, que virá.
O setor privado será afetado, na visão de Renato Casagrande (PSB), governador
do Espírito Santo. “É mais tempo perdido para voltar à atividade plena”,
argumentou.
Como
o presidente definitivamente não é tolo, torna-se um desafio tentar entender o
porquê do movimento. A hipótese menos arriscada é a do cálculo político
imediato: provocando uma tremenda confusão em um primeiro momento, Bolsonaro
impede um ganho claro para o governador paulista em um momento em que decidiu
se imiscuir na eleição municipal. A capitalização que Doria tenta fazer de seu
protagonismo na questão da vacina é clara.
Na
outra ponta, reforça a narrativa contra o vírus chinês, propagada por seu
inspirador, Donald Trump, em um momento em que os republicanos estão nas cordas
dos Estados Unidos. De quebra, o presidente reencanta a parte de seus
seguidores que vive no mundo mágico das conspirações da internet. Os fascistas
do YouTube tinham caído das nuvens com a indicação de Kassio Marques para a
Suprema Corte.
A
ser isso, Bolsonaro operou no curto prazo. Quantos brasileiros a mais morrerão
por causa dessas tertúlias políticas, nesta ótica, é um mero detalhe.
Fome
Recluso
desde março, o escritor e ativista Frei Betto lança seu “Diário da Quarentena”,
pela Editora Rocco. É uma das primeiras reflexões organizadas de um pensador da
esquerda sobre o processo que o mundo inteiro vive.
O
irmão leigo dominicano não é otimista em relação ao fim próximo da pandemia.
Lembra que na história das vacinas a que teve seu ciclo mais rápido foi a da
caxumba, que demorou quatro anos para ser desenvolvida. Mas projeta a vista
adiante, dimensionando uma das catástrofes que devem ganhar impulso com a
pandemia: a fome generalizada. “A pandemia atinge a todos e leva ao gasto de
bilhões e bilhões de dólares. A fome mata muito mais, mas não atinge a todos.
Ela incide sobre os mais pobres e reforça a desigualdade. Ela faz distinção de
classe”, diz.
Neste
sentido, a entrega este ano do Prêmio Nobel da Paz para o Programa Alimentar da
ONU foi um alerta definitivo. O agravamento da fome, em escala planetária, será
uma consequência incontornável da covid-19.
Frei
Betto acha que, diante de tamanho desafio, é míope entender que a manutenção ou
não de um auxílio emergencial robusto está condicionada ao quadro fiscal de
cada nação. A perenização de um auxílio emergencial para os mais vulneráveis
tende a se tornar uma bandeira universal e abalar sistemas políticos em todo o
globo.
No
caso do Brasil, Frei Betto considera que a pandemia teve um efeito político
claro: deixou a oposição brasileira à mercê de variáveis que não controla e que
não pode, por uma questão de integridade moral, torcer para o quanto pior
melhor.
“O
governo está com a hegemonia narrativa. Os panelaços silenciaram. O auxílio
emergencial faz parte da explicação disso e não há como a esquerda se
contrapor”.
Bolsonaro com o auxílio emergencial foi acolhido pelos que não votaram nele. “Em 13 anos de poder o PT não fez a alfabetização política do povo. O bebê do pobre chora de fome e não tem resposta. Isto é uma trava. Colabora com o conformismo. São 120 milhões que ganham até dois salários mínimos. É muita pobreza e este contingente fica acondicionado a acolher tudo o que vier.”
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