Para
a população, importa mais aniquilar a covid-19 do que cálculos políticos
matreiros
Contra
um vírus letal e altamente contagioso como o sars-cov-2, o melhor remédio é ser
pragmático e apostar em todas as vacinas que possam vir a surgir, não importa
de onde venham, desde que sejam comprovadamente eficazes. Essas vacinas não
existem, mas há várias no último estágio de testes (fase 3) e é possível que
até janeiro alguma esteja disponível. Parecem mais adiantados os imunizantes
que estão sendo elaborados pela AstraZeneca e Universidade de Oxford, que no
país será fabricada pela Fiocruz, e a Coronavac, da chinesa Sinopec, que no
Brasil será produzida pelo Instituto Butantan.
O
governo brasileiro pareceu que seguiria o caminho correto, ao realizar acordos
de compras iniciais dessas duas vacinas, de 140 milhões de doses da AstraZeneca
e 46 milhões da Sinopec. Antes de contrair a covid-19, o ministro da Saúde,
general Eduardo Pazuello, havia anunciado acordo para a aquisição da Coronavac,
que chamou de “a vacina do Brasil”. Só que não.
O
presidente Jair Bolsonaro, no dia seguinte, após obter sua dose diária de
inspiração política das mídias sociais de seus apoiadores, decidiu anular o que
Pazuello fizera. “Toda e qualquer vacina será descartada por enquanto”, disse.
Propagandista da hidroxicloroquina, que estudos apontam como ineficaz contra o
novo coronavírus, o presidente disse que “a vacina precisa de comprovação
científica”.
Bolsonaro
bradou “traição” porque Pazuello mostrou-se aberto à vacina cuja produção foi
negociada pelo governador paulista, o tucano João Doria, um concorrente certo à
Presidência em 2020. Doria, que não perde a oportunidade de buscar dividendos
políticos com o imunizante, e as redes tucanas o batizaram de “a vacina do
Brasil”. Irritado, Bolsonaro se referiu a ela como a “vacina da China”, da
mesma forma que, para o presidente Donald Trump, o sars-cov-2 é “o vírus
chinês”.
Assim, a campanha presidencial abriu um novo capítulo sanitário, com disputas e demagogia - antes mesmo da existência de vacinas.
As
vacinas testadas ao redor do mundo, com meia dúzia delas com chances de virem a
ser comercializadas, marcam um feito científico histórico: elas levam muito
mais tempo para serem desenvolvidas, e a mais rápida até hoje consumiu 5 anos.
Dadas a escala da ameaça e a magnitude da demanda, na casa de bilhões de doses,
é impossível ter certeza sobre quando estarão disponíveis. O governador João
Doria, manobrando politicamente, anunciou a vacina para dezembro, fato que o
colocaria como pioneiro nacional na introdução de uma vacina contra a covid-19
no país.
O
presidente não quer deixar nenhum espaço político a Doria, a quem rivaliza por
ser seu mais sério competidor no campo da direita, que se tornou quase
monopólio de Bolsonaro. Na eleição para governador que venceu em 2018 - depois
de prometer que jamais abandonaria seu mandato de prefeito -, Doria flertou com
o apoio de Bolsonaro e escalou sua campanha de ataques virulentos ao PT, como
fez o então candidato do PSL.
O
governador usa a vacina como trunfo político, enquanto tenta montar uma aliança
partidária forte que reúna a centro-direita, a partir do DEM, embora esta
estratégia possa esbarrar com mais obstáculos em seu próprio partido, o PSDB.
Bolsonaro, igualmente, reúne parte do Centrão para proteger seu mandato e como
trampolim para a reeleição.
Não
se deve esperar qualquer atitude de estadista de Bolsonaro diante da covid-19.
Ele desde o começo nunca reconheceu a calamidade pública que o contágio
representava e foi parco em palavras de apoio às vítimas, que já são mais de
155 mil. Durante o auge da crise, neutralizou o Ministério da Saúde, após a
saída de dois ministros. Escolheu um general que nada entende do assunto,
apenas porque queria alguém que obedecesse suas ordens, Condenou o uso de
máscaras.
Sua
primeira reação à perspectiva de haver uma vacina em breve, anunciada por
Doria, foi imediata: disse que não será obrigatória. Para Bolsonaro uma vacina
é até algo secundário, pois nunca viu nada na pandemia que impedisse as pessoas
de trabalhar, como instou várias vezes. Sua maior preocupação agora é impedir
que ela beneficie concorrentes. Doria vislumbra um grande potencial eleitoral
em quem sair na frente na corrida pela imunização. A disputa política sobre o
assunto é irresponsável e mesquinha. Para a população, importa mais aniquilar a
covid-19 do que cálculos políticos matreiros.
Vacina contra a Covid-19 deve ser obrigatória – Opinião | O Globo
É
uma lástima que, em pleno século XXI, ainda seja necessário defender essa
conquista civilizatória
‘É lamentável que, em pleno século XXI, ainda
se tenha de combater o terraplanismo na Saúde’, concluía editorial do GLOBO de
setembro em defesa da obrigatoriedade da vacinação contra a Covid-19. Continua
lamentável. E continua necessário, diante da profusão de despropósitos que
emanam do presidente Jair Bolsonaro. Os ataques recentes dele à vacina
obrigatória exigem uma atitude firme dos governos estaduais e municipais, do
Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal (STF).
Só
a ignorância explica que se conteste essa conquista civilizatória com
argumentos que ecoam a Revolta da Vacina, de 1904. Já naquela época, bastava
ter lido o liberal John Stuart Mill para entender a falácia de quem atacava a
vacinação compulsória alegando defender a liberdade individual.
Vacinar-se
envolve responsabilidade não apenas diante de si, mas também dos outros, pois o
benefício vai além da proteção ao vacinado. Quanto mais imunes há numa
população, mais difícil o contágio. A partir de certo ponto, o vírus não
encontra suscetíveis para infectar — e some. Essa imunidade coletiva garante a
erradicação da epidemia.
Quem
não toma vacina se beneficia dela sem arcar com ônus nenhum. Se porventura
pegar a doença, pode provocar dano coletivo ao transmiti-la, criando novo
surto. É por isso que o Estado deve ter o direito de impor sanções a quem não
quer se vacinar. É o mesmo princípio que rege o serviço militar obrigatório, um
dever cívico estabelecido em nome da segurança de todos.
No
Brasil, uma lei de 1975 estipula a obrigatoriedade das vacinas mais comuns. O
artigo 268 do Código Penal determina que é crime sujeito a multa e detenção de
até um ano “infringir determinação do poder público, destinada a impedir
introdução ou propagação de doença contagiosa”.
A
lei da pandemia, aprovada pelo Congresso em fevereiro e sancionada por
Bolsonaro, autoriza o governo a determinar a vacinação compulsória também
contra a Covid-19. Estipula que estados e municípios podem fazê-lo. O PDT
entrou com uma ação no Supremo para garantir o cumprimento dessa lei. Como já
conferiu aos entes federativos a autonomia para medidas de controle na
pandemia, o STF deverá manter o entendimento.
Mas
a ausência de uma determinação federal abrangente traz consequências nefastas.
Nenhuma das vacinas em estudo contra a Covid-19 será 100% eficaz na proteção —
o mínimo exigido pela OMS para referendar o uso é 50%; o desejável, 70% —, e a
proporção de imunes ao coronavírus necessária para a imunidade coletiva é
estimada entre 50% e 70% da população.
Se,
portanto, 100% dos brasileiros tomassem uma vacina 70% eficaz, tal limiar estaria
assegurado. Vacinas menos eficazes ou o relaxamento nos critérios de vacinação,
a depender das inclinações de prefeitos e governadores, significam menos imunes
— e risco maior de o vírus permanecer em circulação. O culto à ignorância do
governo federal continuará a cobrar um preço alto em vidas humanas.
Igreja
avança com o apoio do Papa à união civil de homossexuais – Opinião | O Globo
Francisco
sempre foi acolhedor com os gays, mas nunca falou de maneira tão clara sobre o
assunto
Desde
que assumiu o pontificado, em 2013, o Papa Francisco promove avanços na posição
da Igreja em temas sociais. Já fizera acenos de acolhimento e tolerância aos
gays, mas nunca chegara ao ponto de defender de forma tão clara a união civil
de homossexuais como em depoimento no documentário “Francesco”, exibido
quarta-feira no Festival de Cinema de Roma.
Ainda
cardeal em Buenos Aires, Jorge Mario Bergoglio apoiou em 2010 uma proposta de
formalização dessas uniões. Ao assumir em Roma três anos depois, não evitou
tratar do tema. Foi o que fez na entrevista dada no voo de volta da viagem ao
Brasil, no primeiro ano do pontificado. A atitude de Francisco faz a Igreja
Católica se atualizar para cumprir sua missão evangélica, só factível se o
clero se aproximar da realidade das pessoas.
Sua
primeira encíclica, “Laudato Si” (Louvado Sejas), lançada em 2015, é coerente
com tal perfil arejado. O tema do documento é a relação entre o Homem e a
Natureza. O Papa formaliza a preocupação da Igreja com a degradação do meio
ambiente e a incapacidade de a comunidade internacional recuperá-lo. Na visão
de Francisco, o ser humano e o planeta são parte de um todo. Não há desconexão
entre eles. É um entendimento que mostra o alcance das preocupações de
Francisco com o atraso da Igreja no relacionamento com o mundo real.
A
oposição que o Papa enfrenta do conservadorismo católico, com um núcleo no
próprio Vaticano, aumentará com a nova declaração progressista. Francisco se vê
forçado a seguir uma rota cheia de perigos, porque, ao mesmo tempo que luta por
uma visão mais moderna da Igreja, passou a punir os casos de pedofilia,
contrariando também parcela conservadora do Vaticano que preferia acobertá-los.
Depois
de demonstrar alguma timidez, segundo críticos, no enfrentamento desses crimes,
ele reagiu. Já expulsou bispos e afastou outros sacerdotes, mesmo em Roma, sem
recuar diante de resistências nos Estados Unidos, onde explodiram os piores
escândalos de crimes sexuais cometidos por clérigos e acobertados por
superiores.
Francisco,
depois de dois Papas conservadores (João Paulo II e Bento XVI), entra na
História ao abrir portas e janelas da Igreja, como tentou João XXIII em seu
curto pontificado (1958-1963). Sua manifestação em favor dos gays serve de
bálsamo especial aos brasileiros, que vivem um momento político de retrocesso
conservador nos costumes.
Sinal
disso são as críticas que a união legal entre homossexuais, sancionada pelo
Supremo, enfrenta do grupo que ocupa o poder em Brasília. Também para eles, as
palavras cristãs de Francisco chegam em boa hora.
A sabatina que não houve – Opinião | O Estado de S. Paulo
Sabe-se
que a indicação de Kassio Nunes Marques tem amplo apoio político. A régua da
Constituição é um pouco mais alta.
Qualquer prova oral de concurso público para a magistratura é muito mais exigente do que a sabatina do desembargador Kassio Nunes Marques feita pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado no dia 21 de outubro. Certamente, são realidades distintas, com requisitos e condições muito diferentes, mas tanto a sabatina como a prova oral de um concurso público devem ser de fato etapas probatórias, nas quais se avalia seriamente o candidato.
No
entanto, o Senado parece considerar a sabatina da pessoa indicada pelo
presidente da República para o Supremo Tribunal Federal (STF) como uma sessão
burocrática, servindo apenas para oficializar o que foi previamente acordado.
Vista tantas vezes em ocasiões anteriores, essa acomodação ocorreu novamente no
último dia 21. Em vez de ser uma avaliação, a sessão da CCJ do Senado foi uma
grande homenagem ao desembargador do Tribunal Regional Federal da 1.ª Região
(TRF-1). Mais do que perguntas, abundaram elogios ao candidato.
Tal
modo de proceder destoa do que a Constituição prevê para a nomeação dos novos
ministros do Supremo. Segundo o texto constitucional, o presidente da República
tem a prerrogativa de indicar os novos ministros do STF. Com isso, assegura-se
que a composição da mais alta Corte do País reflita, em alguma medida, a
vontade e o sentir da população. O eleitor escolhe o presidente da República,
que, por sua vez, escolhe os ministros do Supremo. Por exemplo, caso a
indicação do presidente contrarie a vontade popular ou descumpra as promessas
de campanha, o eleitor tem a possibilidade de puni-lo nas eleições seguintes.
O
critério político, no entanto, não é suficiente. Tendo em vista a relevância da
missão do Supremo – compete-lhe nada mais nada menos que a defesa da
Constituição –, a Assembleia Constituinte estabeleceu duas qualidades
indispensáveis para os ministros do STF: notável saber jurídico e reputação
ilibada. São requisitos exigentes e devem ser aplicados com todo o rigor. Não
faz sentido, por exemplo, que a obtenção de uma cadeira no Supremo seja mais
fácil que o ingresso na primeira instância da magistratura.
Para
garantir o cumprimento dessas condições, a Constituição conferiu ao Senado a
competência de sabatinar a pessoa indicada pelo presidente da República para o
Supremo. Trata-se de uma das prerrogativas mais relevantes da Casa, uma vez que
a nomeação de um novo ministro do STF tem muitos e duradouros efeitos sobre a
vida dos brasileiros e o funcionamento do Estado. Quando o Senado cumpre seu
dever de forma protocolar – ou, o que é pior, quando enxerga seu papel na
sabatina como mero homologador de acordos políticos previamente costurados –, o
País perde a garantia de que o Supremo esteja composto segundo os cânones
constitucionais: por 11 ministros de notável saber jurídico e de reputação
ilibada.
Antes
de o presidente Jair Bolsonaro indicar o sr. Kassio Nunes Marques para o
Supremo Tribunal Federal, pouco se sabia sobre o desembargador do TRF-1. O
grave mesmo, no entanto, é que se continue sabendo muito pouco sobre ele após
todo o rito de aprovação transcorrido no Senado. Ou seja, a sabatina não trouxe
nenhum dado novo capaz de atestar o preenchimento dos requisitos
constitucionais. A rigor, isso não é nenhum demérito do sr. Kassio Nunes
Marques. O demérito é do Senado, que não cumpriu a contento sua tarefa.
No
plenário, a indicação de Kassio Nunes Marques obteve 57 votos favoráveis e 10
contrários. Alcançou facilmente, portanto, a maioria absoluta exigida pela
Constituição. No entanto, como o Senado não fez sua tarefa de sabatinar
seriamente, o País ainda não sabe se os requisitos constitucionais foram
preenchidos.
Por
ora, sabe-se que a indicação se deu por amizade. “Já tomou muita tubaína
comigo”, disse Jair Bolsonaro. Também se sabe que Kassio Nunes Marques conta
com amplo apoio no meio político. “É uma grande e oportuna indicação que, com
certeza, elevará a nossa Corte superior”, avaliou o senador Renan Calheiros
(MDB-AL). A régua da Constituição é um pouco mais alta.
Livro em branco – Opinião | Folha de S. Paulo
Kassio
Nunes chega ao STF prometendo moderação em sabatina pouco esclarecedora
Não
houve nenhuma surpresa na aprovação
do nome do juiz Kassio Nunes Marques para a vaga aberta no Supremo
Tribunal Federal com a aposentadoria de Celso de Mello.
Primeiro
indicado por Jair Bolsonaro para a corte, ele obteve o apoio de maioria
confortável no Senado. Contaram-se 57 votos a favor da nomeação e apenas 10
contrários, registrada uma abstenção.
Encarregados
de examinar a biografia e as qualificações dos nomeados para o Supremo, os
senadores falharam
na missão. A maioria preferiu adular o magistrado a inquiri-lo com o rigor
necessário para aferir sua aptidão.
Aliados
de Bolsonaro no centrão se revezaram para enaltecer os predicados de Kassio na
audiência. Integrantes de partidos que fazem oposição ao governo também o
trataram com condescendência.
Como
sempre acontece nessas ocasiões, o juiz se esquivou de questionamentos sobre
temas em discussão no Supremo, evitando se manifestar sobre assuntos que poderá
julgar quando vestir a toga.
Deixou
de lado a inibição só uma vez, ao se manifestar contra mudanças na anacrônica
legislação que criminaliza o aborto no Brasil —preferindo alinhar-se com o
ponto de vista que é também o do presidente e de seus seguidores.
Sentiu-se
à vontade para contornar as raras perguntas que lhe foram feitas sobre as
inconsistências no seu currículo acadêmico. Driblou até indagações sobre o
trabalho de sua mulher, funcionária de um gabinete do Senado, dizendo ignorar
as atividades que ela exerce.
O
magistrado tampouco iluminou as circunstâncias que levaram a sua escolha por
Bolsonaro, ao final de um processo opaco em que congressistas e até integrantes
do tribunal se mobilizaram em seu favor.
Kassio
definiu-se como juiz garantista, preocupado com os direitos inscritos na
Constituição, e consequencialista, que procura avaliar os efeitos práticos de
suas decisões e não apenas a letra da lei.
Defendeu
corretamente a autocontenção do STF, argumentando que o protagonismo na
definição de políticas públicas cabe ao Executivo e ao Legislativo —e que não
compete ao Judiciário responder a pressões da opinião pública.
Numa
instituição cuja autoridade tem sido minada pelo comportamento individualista
de seus membros, que frequentemente tomam decisões controversas sem submetê-las
ao crivo dos colegas no plenário, a moderação de Kassio pode parecer um
respiro.
Dada
a insuficiência dos esclarecimentos prestados na sabatina no Senado,
entretanto, será preciso esperar mais tempo para saber se o discurso do novo
ministro é para valer ou se ele estava apenas retribuindo a deferência dos que
o ajudaram a chegar ao tribunal.
Ensaio de privatização – Opinião | Folha de S. Paulo
Governo
anuncia estudo para vender os Correios, mas inoperância é obstáculo
Dada
a falta de convicção e competência demonstrada até agora pelo governo para
executar um programa de privatizações, não deixa de ser boa notícia que o
Ministério das Comunicações tenha desenhado uma proposta
para orientar a venda dos Correios.
A
empresa é exemplo de todas as mazelas frequentemente apontadas em estatais, a
começar pelos casos de corrupção —não custa recordar que o escândalo do
mensalão, em 2005, começou com revelações de propinas recebidas por
funcionários para fraudar licitações.
As
perdas para os beneficiários do Postalis, o fundo de pensão, também são dignas
de nota, mostrando o espaço para malfeitos quando cargos de direção são
ocupados por políticos e os critérios de investimento são permeáveis ao tráfico
de influência.
Com
quase 100 mil funcionários, os Correios também são caso notório de
ineficiência, com inúmeras greves e falhas na prestação de serviços nos últimos
anos.
Uma
possibilidade consiste em seguir o modelo de concessão para a iniciativa
privada, tendo assegurada a universalização nas entregas. Alterar as
atribuições da Anatel, a agência das telecomunicações, faz parte desse desenho.
O
modelo final, ainda em estudo, deverá levar em conta a experiência
internacional. Num mundo em rápida transformação digital, há amplo espaço para
inovação e criação de novos negócios.
O
importante é assegurar a concorrência. Nesse novo regime, os Correios podem ser
mais um participante do mercado, provavelmente o principal, considerando sua
escala, desde que a empresa possa ampliar sua eficiência.
A
privatização poderá ser total ou ocorrer em etapas, com venda parcial das
ações, como já ocorreu com outras estatais. Considera-se, ainda, um período de
estabilidade para os funcionários, com o objetivo de reduzir as resistências.
O
primeiro passo, aparentemente, foi dado, mas não autoriza otimismo se
prevalecer a hesitação do governo Jair Bolsonaro, resultante de corporativismo
do presidente e inoperância da equipe.
A instrumentalização da AGU – Opinião | O Estado de S. Paulo
Neste
governo, órgão vem tomando iniciativas estranhas às suas atribuições
funcionais.
Criada pela Constituição para representar a União perante o Supremo Tribunal Federal (STF), a Advocacia-Geral da União (AGU) vem, desde o início do governo Bolsonaro, assumindo iniciativas cada vez mais polêmicas e estranhas às suas atribuições funcionais.
Pela
Constituição, ela deve atuar tanto no plano consultivo, assessorando os
dirigentes do Poder Executivo federal com o objetivo de dar segurança jurídica
aos seus atos e suas decisões, como no contencioso, por meio de representação
judicial e extrajudicial. Mas, embora seja um órgão de Estado, algumas de suas
iniciativas parecem motivadas mais por critérios partidários do que técnicos,
na medida em que atendem aos interesses eleiçoeiros do presidente da República,
de seus ministros e dos grupos que o apoiam.
Pelo
menos três iniciativas adotadas nos últimos meses comprovam essa tendência. A
mais recente foi uma notificação judicial feita pelo órgão contra um membro do
Observatório do Clima, que concedeu uma entrevista na qual criticava uma fala
do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, numa reunião ministerial,
sugerindo usar a comoção em torno da pandemia para “passar a boiada” na
legislação ambiental. Ao atuar como defensora do ministro, que é a parte
notificante, a AGU se apresentou como “terceiro interessado”. A justificativa
foi de que, em sua fala, Salles teria pedido pareceres jurídicos ao órgão para
fundamentar seus argumentos.
Na
notificação, a AGU afirma que “o pedido de explicações, admissível em qualquer
das modalidades de crimes contra a honra, constitui típica providência de ordem
cautelar destinada a aparelhar ação penal tendente à sentença condenatória”. A
afirmação é tão desmedida e agressiva que foi interpretada nos meios jurídicos
e políticos como uma tentativa explícita de intimidação contra os
ambientalistas que criticam a desastrada atuação do governo na área.
A
segunda iniciativa da AGU estranha às suas atribuições funcionais foi o recurso
que enviou ao STF pedindo que esclareça pontos do julgamento que incluiu a
homofobia nos crimes de racismo. O que o órgão almeja é que a Corte declare se
essa inclusão atinge ou não a liberdade religiosa. Além de o Estado brasileiro
ser laico, como determina a Constituição, essa não é uma questão de interesse
precípuo da União. É, isto sim, uma questão de interesse exclusivo das igrejas
evangélicas, que se converteram em fonte de apoio político a Bolsonaro.
Do
ponto de vista substantivo, o objetivo da AGU é reduzir o alcance da decisão do
Supremo. Embora nos meios jurídicos a expectativa seja de que a Corte não
acolherá o recurso, o episódio deixa claro que o governo colocou a estrutura
jurídica da União a serviço dos interesses políticos do presidente, com vistas
à sua campanha pela reeleição em 2022.
A
terceira iniciativa polêmica da AGU ocorreu no fim de julho, quando o órgão
entrou com ação no Supremo contra a decisão do ministro Alexandre de Moraes que
determinou que as redes sociais retirassem do ar contas de influenciadores,
empresários e políticos bolsonaristas. Pelo Twitter, Bolsonaro protestou,
afirmando que a decisão feria as liberdades de opinião e de informação
previstas pela Constituição.
A
rigor, o recurso contra o bloqueio dessas contas não cabia ao poder público,
mas àqueles que não puderam mais se expressar, ao Twitter e ao Facebook.
Alegando que a decisão de Moraes afrontou a Constituição, uma vez que “em uma
democracia saudável a liberdade de expressão deve ser plena”, o recurso da AGU
foi mais uma demonstração de como Bolsonaro confunde interesse de Estado e
interesse pessoal. E, mais grave, como também não hesita em recorrer à
estrutura jurídica da União para atender aos seus interesses pessoais.
Vai
ficando evidente, assim, que o presidente Bolsonaro não conhece limites. Por
isso, quanto mais caminhar nessa linha, como a tentativa de instrumentalização
da AGU evidencia, mais necessário se torna que o Supremo dê um basta a tanto
acinte, evitando desse modo a corrosão das instituições.
Os números do Enade – Opinião | O Estado de S. Paulo
Universidades
públicas ainda têm desempenho muito superior ao das particulares.
Divulgados
pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), os
resultados de 2019 do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) – que
é uma avaliação obrigatória dos estudantes que estão no último ano do curso de
graduação – não apresentam novidade. Pelo contrário, mostram, mais uma vez, as
disparidades crônicas do ensino superior brasileiro.
Ao
todo, foram avaliados 8.368 cursos. O Enade analisa os aspectos da formação
geral e específica desses estudantes. A cada três anos o Inep escolhe algumas
áreas para avaliar. Na edição de 2019, foram selecionadas 29 áreas, entre elas
medicina, odontologia, agronomia, veterinária, zootecnia e as engenharias. As
notas vão de 1 a 5 e correspondem ao desempenho médio dos estudantes de cada curso
com relação ao desempenho médio da área em que está se formando.
Segundo
o Enade, apenas 6% dos cursos avaliados alcançaram a nota máxima; 35% receberam
a nota mínima; 57% tiveram notas intermediárias; e 2% ficaram sem nota. No
âmbito do ensino superior privado, que corresponde a 76% dos cursos avaliados,
só 94 cursos obtiveram nota 5. Nas universidades federais, foram 342, entre
1.426 cursos avaliados.
Num
período em que a Revolução Industrial 4.0 vem mudando rápida e radicalmente as
técnicas de produção, os números do Enade causam preocupação. Eles mostram que
muitos formandos não têm qualificação para se afirmar profissionalmente nas
áreas que estudaram, por causa da má qualidade de seus cursos. E esse problema
pode se agravar ainda mais, dependendo do modo como vier a ser enfrentado pelo
Ministério da Educação (MEC).
Desde
o início do governo Bolsonaro, o ensino superior público foi várias vezes
acusado de ser local de bagunça e de estar sob o controle de grupos de
esquerda. Esse também foi um dos argumentos invocados, juntamente com a crise
fiscal, para justificar a redução do orçamento das universidades federais. Os
números do Enade, porém, deixam claro que as críticas não procedem. Mostram que
as instituições federais – e também estaduais – continuam com um desempenho
muito acima do das instituições particulares.
No
ensino superior privado, por exemplo, cuja expansão foi estimulada pelo MEC no
primeiro ano do governo Bolsonaro, 42% das universidades particulares ficaram
com as notas 1 e 2. É um número expressivo. Além disso, do total de alunos
avaliados dessas universidades, 36% recebiam algum tipo de ajuda do governo
federal, por meio do Programa Universidade para Todos (ProUni) e do Programa de
Financiamento Estudantil (Fies). Ou seja, os números do Enade revelam que não
faz sentido o governo reduzir verbas orçamentárias para o ensino público, ao
mesmo tempo que gasta recursos escassos com ajuda às universidades particulares
muito fracas, das quais várias pertencem a grupos empresariais com capital aberto.
Na
sessão do Enade de 2019, o presidente do Inep, Alexandre Lopes, reconheceu,
ainda que de forma indireta, essa falta de lógica. Segundo ele, apesar de ter
havido “uma grande expansão do ensino privado no Brasil nos últimos anos,
também tivemos instituições privadas que conseguiram bons resultados”. O
problema é que esse número de instituições é pequeno e que elas são quase todas
confessionais ou vinculadas a conhecidas fundações de direito privado, tratando
a educação como missão e não como negócio.
Por
seu lado, o ministro da Educação, Milton Ribeiro, afirmou que objetivo do MEC,
a partir de agora, é valorizar “mais a qualidade e não tanto a quantidade”. Em
princípio, ele está no caminho certo. Resta ver, contudo, se conseguirá evitar
cortes orçamentários nas universidades públicas e, ao mesmo tempo, fazer com
que o auxílio financeiro aos alunos das universidades privadas resulte numa
educação com maior qualidade. Enquanto o MEC não passar da palavra à ação, o
ensino superior do País continuará expedindo diplomas sem, contudo, assegurar a
todos os alunos a formação qualificada de que necessitam para ter vez no
mercado de trabalho.
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