Um
dos candidatos a prefeito da cidade de São Paulo comentou com os jornalistas,
após um encontro na Associação Comercial, que a suposição de que os moradores
de rua seriam os mais atingidos pela pandemia não se confirmou.
Ele
arriscou uma hipótese para explicar outra e duvidosa hipótese: “Talvez eles
sejam mais resistentes do que a gente, porque eles convivem o tempo todo nas
ruas, não têm como tomar banho todos os dias”. A fala não tem uma evidência
médica. Mas tem uma evidência sociológica de como é o mundo do candidato: o da
sociedade dividida entre “a gente” e “eles”, os que tomam banho e os que não o
tomam.
Sua
esdrúxula explicação lembrou-me de outro caso, de anos atrás. Eu estava numa
reunião em colégio católico em que se debatia pobreza e exclusão social. Uma
das senhoras, de uns 60 anos, tomou a palavra, virou-se para o único negro
presente, um senhor de idade, e disse-lhe: “Vocês, pobres, precisam cuidar da
limpeza, varrer a casa, manter a casa limpa”. Era sua solução para o problema da
pobreza.
Muito
paciente, aquele senhor lhe respondeu: “Minha senhora, para limpar minha casa
eu preciso ter uma casa”. Ela, provavelmente, não entendeu que, nas questões
sociais, há o que vem antes e o que vem depois, o principal e o secundário.
Como
no preconceito daquela senhora de classe média, o senso comum do candidato
paulistano é mera hipótese, sem fundamento científico. Embora na ciência não
seja raro que o bom senso do pesquisador faça descobertas inesperadas, no
terreno do improvável. Mas isso só ocorre quando o senso comum do cientista não
é tão comum assim. Ele pode interpretar o que significam coincidências
repetidas em questões como a da saúde pública.
A
descoberta da vacina da varíola decorreu da constatação de que as ordenhadeiras
de vacas, na Inglaterra, não contraíam varíola. Edward Jenner (1749-1823), o
pesquisador inglês que criaria a vacina, percebeu o alcance científico do fato
porque era um cientista. As pústulas do úbere das vacas continham o pus
vacínico. Elas e suas ordenhadeiras eram agentes de um experimento científico
casual.
A
questão política na fala do candidato é a de saber por que escolheu ele
justamente a hipótese da falta de banho para explicar a suposta imunidade dos
moradores de rua à covid-19. Poderia haver outras, como a de que a alimentação
a que têm acesso precário essas vítimas do descarte social talvez seja
insuficiente e pobre. Não conteria certos alimentos que aumentariam sua
vulnerabilidade à doença. Ou que não são exagerados consumidores de remédios,
como outros muitos. Itens do farmacismo do exagero talvez os tornasse mais
vulneráveis. Estou apenas derivando suposições a partir do mesmo senso comum
que sustenta a hipótese do candidato de que menos banho é igual a menos
covid-19. É tudo igualmente falso.
O
que a resposta escolhida pelo candidato revela, politicamente, é que ela se
funda em disseminado e arraigado preconceito contra pobre. O de que pobre não
toma banho. Isso é falso. Em observações que fiz numa das grandes favelas de
São Paulo, o cuidado com o banho e a apresentação pessoal contrasta com as
condições notoriamente adversas dos minúsculos barracos. Seus moradores
dependem de carregar água de longe para o banho de caneca ou de bacia. Banho é
banho. Os barracos e seus moradores estão sempre muito limpos.
Vi
algo semelhante num pavilhão da Casa de Detenção, pouco antes de ser demolido.
Os presos, notoriamente desassistidos, com o que sabiam criavam chuveiros
elétricos com vasilhas de margarina e gambiarras. Era o senso comum criativo
dos desvalidos em contraste com o dos mandões que os abandonavam.
Moradores
de rua da cidade de São Paulo e, provavelmente, em outros lugares têm
estratégias para o banho e a limpeza. Alguns usam os banheiros dos cemitérios.
Um deles me explicou que são mais limpos do que os poucos banheiros públicos.
Outros
têm entendimento com donos de bares para usar o banheiro do estabelecimento.
Cuidam para deixá-lo limpo e manter o crédito moral desse acesso. Muitos se
lavam e lavam suas roupas no espelho d’água da praça da Sé. Depois, penduram as
roupas num dos respiradouros do metrô, ali mesmo, para secá-las rapidamente ao
ar da poderosa ventilação que sai de lá de dentro.
Essa
criatividade é própria do que o antropólogo Oscar Lewis (1914-1970) definiu
como cultura da pobreza.
Se
o candidato conhecesse a cidade que quer governar, conheceria a cultura de rua
dos que nela moram, suas regras, sua concepção de ordem. Há mais ordem social
entre os pobres das ruas do que nos recintos do poder.
O
mesmo vale para os outros candidatos. Nenhum deles abriu o bico para assinalar
o preconceito social óbvio na afirmação do seu colega de disputa.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Moleque de Fábrica" (Ateliê).
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