Cuecas
não foram feitas para guardar coisa alguma, mas para ocultar e proteger o
hemisfério do nosso corpo concebido como o mais complicado
“Estamos em tempos de cuecas”, diz Fuldêncio
Silva, meu velho companheiro do Bar do Soares, aqui de Niterói, levantando um
trago de cachaça de olho zombeteiro no meu uísque.
–
Aliás – continua ele, sério como um ministro prestes a ser desmoralizado pelo frenético
presidente absolutista –, a cueca é uma veste metafísica. Ela faz parte das
indumentárias da intimidade, essas roupas que, mesmo fabricadas com os mais
caros tecidos, são ocultas e desnudam. Está em oposição ao conjunto das vestes
reais ou talares.
É
triste constatar que muitos dos nossos dirigentes estão de cueca. Cuecas não
foram feitas para guardar coisa alguma, mas para ocultar e proteger o
hemisfério do nosso corpo concebido como o mais complicado. Calcinhas despertam
luxúria, cuecas encarnam a vulgaridade masculina. Elas cobrem o equador moral –
os genitais e a intrigante bunda que, perdoe-me o trocadilho, abunda com sua
igualmente potente metafísica o nosso imaginário ou filosofia. No Brasil,
existem filósofos da bunda, bem como, muitos bundões...
–
Uma filosofia de bunda ou da bunda? – perguntei, provocador.
–
Os dois lados competem sem saber que são interdependentes. Pois o que é um
intenso simbolismo senão uma metafísica? Algo que a educação reprime, mas que a
política realizada com feroz egoísmo, invejável desatino e admirável
ambiguidade é rotina no Brasil?
E
a cueca – prosseguiu Fuldêncio – tem afinidade com personagens curiosos e
obviamente anormais: os “políticos” que, salvo um ou outro, ofendem a política
e caracterizam esse extraordinário momento, no qual as cuecas retornam à cena,
ativando identidades corporativas senatoriais, já que o ridículo de um senador
com dinheiro na cueca afeta a corporação da qual ele faz parte, salvando ou
desmoralizando a categoria. Lembro – avançou o expositor – que a cueca esteve
na esquerda petista e hoje integra o bolsonarismo.
A
cueca na sua metafísica nacional esconde um pedaço do corpo e serve para
guardar dinheiro escuso. Esse produto da politicagem em família, que os antigos
equacionavam com aquilo que a bunda produz como o maior símbolo de impureza.
Pois o dinheiro guardado apodrece. Vira excremento – esse tesouro do diabo – e
dos políticos imorais que sodomizam o Brasil. Entre nós, até a cura vira uma
patologia política...
A
cueca, como as luvas, o sapato e o chapéu, sinaliza as fronteiras do corpo. O
chapéu é como a coroa ou o halo dos reis e dos santos. As luvas protegem nossas
delicadas mãos, alérgicas ao trabalho físico a ser feito por escravos. As
roupas transcendem a utilidade e adquirem contornos metafísicos. Elas protegem
e acusam imoralidades. É o que ocorre quando a roupa de dentro é posta do lado
de fora. Ou quando a cueca senatorial escandaliza porque virou carteira de
dinheiro. Em vez de intermediar a sujeira interior e limpeza exterior, ela
comprova o quanto vilipendiamos a nobre e honrada arte da política.
Maquiavélica, é claro, mas com lógica e senso de serviço senão ao príncipe,
pelo menos à pátria. Nada é mais selvagem do que flagrar senadores com mochilas
e cuecas cheias de dinheiro!
–
Aliás, foi Chaplin quem me mostrou a importância cósmica do traseiro. Ele
possuía uma perfeita consciência de que todos iriam rir da figura pomposa,
narcisista e autoritária caindo de bunda num chão nivelador e
igualitário!
A
vergonha está na cara, mas nada é mais indigno do que um chapliniano pé na
bunda. Aliás, é o que merece essa brincadeira errática de Bolsonaro com o
autoritarismo.
É
patético, continuou Fuldêncio Silva, ver um traseiro fora de hora ou,
inversamente, mostrá-lo para um desafeto, fazendo o que os americanos chamam de
“mooning” – um “aluamento” – revelador de desprezo. O insulto está em mostrar
que o inimigo não merece a nossa cara (repositório de vergonha, honestidade e
honra), mas o lado mais oposto do nosso corpo. Essa máscara rabelaisiana que,
como uma cara, tem bochechas, olho, tenta falar e, no Brasil, não teria gênero.
Por isso, pode ser degustada como comida por quem a aprecie.
–
Jamais havia pensado nisso – ouviu-se em torno da mesa.
–
Pois é! Vivemos num país que fala muito e pensa pouco. Sobretudo sobre si mesmo
– arrematou o sempre raivoso Mario Batalha com sua careca na qual reluzia o meu
sorriso, pois havia, finalmente, encontrado o assunto da crônica.
*É historiador e antropólogo social, autor de ‘Fila e Democracia’
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