quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Míriam Leitão - Banco Central e o alerta fiscal

- O Globo

O Banco Central decide hoje a taxa de juros em um cenário bem diferente da última reunião. Não há aposta em novo corte da Selic. A discussão no mercado financeiro é quando a taxa voltará a subir com a piora do quadro fiscal. A inflação acelerou. O setor de gás passará por uma onda de reajustes em patamar de 25% em muitos estados, como Bahia, Santa Catarina e Rio de Janeiro. Os juros futuros subiram porque há enorme dúvida sobre o financiamento da dívida pública.

Hoje a decisão está dada. A Selic será mantida em 2%. Ano que vem ela aumenta, dizem os bancos. Há poucos meses, o Banco Central passou a adotar uma comunicação com detalhamento mais claro sobre os seus próximos passos, o que eles chamam de forward guidance. O objetivo é evitar surpresas na condução da política monetária. Mas se for para seguir direito essa estratégia precisa dizer com todas as letras que as condições de financiamento da dívida pioraram, e as expectativas de inflação subiram. Terá o BC autonomia para dar um recado duro ao governo sobre a gravidade do momento? Não basta colocar na agenda do Congresso o projeto de independência do BC. Autonomia se mostra na prática. Adianta pouco falar mais uma vez que o cenário é “desafiador”. O FMI diz que o Brasil é o país emergente com pior desempenho fiscal nesta pandemia.

A inflação surpreendeu nas últimas semanas. As projeções dos bancos e consultorias perderam para a realidade. Os IGPs, que medem a inflação no atacado, estão com variações em dois dígitos. Os preços da soja (83%), do milho (75%) e do trigo (40,9%) dispararam para os produtores, e isso significa alta de alimentos importantes da cesta básica, como carnes, pães, massas e óleos de cozinha. Arroz (122%) e feijão (28%) também subiram muito no atacado. Segundo a MB Agro, a alta dos alimentos acontece pelo aumento do dólar, dos preços internacionais das commodities e pela demanda no Brasil turbinada pelo auxílio emergencial.

Na taxa em 12 meses, o IPCA acelerou de 1,88%, em maio, para 3,14% em setembro. Ainda está abaixo da meta. A prévia de outubro foi um espanto: 0,94%. A MB Associados projeta que a inflação continuará subindo até 5,4% em maio do ano que vem, segundo o economista Sérgio Vale. Ou seja, mesmo se o governo começar a enfrentar a crise fiscal, já há uma alta da inflação contratada. Se cometer erros, o risco é de uma nova disparada do câmbio, com pressão ainda maior sobre os preços. Ontem, o Bradesco reviu sua projeção para a inflação, com aumento da Selic pelo Banco Central a 3,5% até o final do ano que vem. O banco alerta, porém, que nesse cenário não está contando com “qualquer flexibilização do teto, postergação do estado de calamidade ou eventual extensão do auxílio emergencial fora do teto de gastos.” Ou seja, esse é o cenário benigno. Se o governo adotar qualquer saída populista, ou inventar uma contabilidade criativa, haverá uma mudança total no preço dos ativos.

Segundo a Abrace, Associação dos Grandes Consumidores de Energia, após as quedas nos preços do gás durante a pandemia o que se espera agora é uma enxurrada de reajustes em 18 estados. São Paulo deve ter alta de 8,8%, mas os demais terão aumento nas tarifas na casa de dois dígitos, chegando a 30% em Minas Gerais e Pernambuco, e 25% no Rio, Bahia e Santa Catarina. Essas altas seriam decorrentes da subida do dólar, que ontem chegou a R$ 5,68, e da elevação do preço do petróleo no mercado internacional. A reação ideológica do Itamaraty na eleição de Luis Arce na Bolívia torna mais difícil uma boa solução na renegociação do gás com o país vizinho.

A economia está na seguinte situação: a queda do PIB foi atenuada pelo auxílio emergencial, mas todo o gasto da pandemia piorou muito a situação fiscal. O governo não sabe ainda como vai financiar o novo programa social ou a ampliação do Bolsa Família. Neste momento de juros baixos, em 2%, há uma janela para fazer o ajuste. Mas o governo não enviou reformas que mudem o quadro de verdade. O presidente é populista e nunca teve real aderência à agenda de equilíbrio fiscal. Bolsonaro não mexeu no teto com medo de que isso o leve a um impeachment. Se seus conselheiros o convencerem do contrário, ele, sim, mexerá no teto. Aí a casa cai no mercado financeiro.

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