No
conflito Salles x Ramos, os nomes não importam. São as alas por trás deles que
operam
Vamos
invocar logo a Última Ceia, de Leonardo Da Vinci, no detalhe do
discípulo amado: ao enterrar a cabeça no peito do presidente Jair Bolsonaro, o ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente)
criou, finalmente, um símbolo apropriado a este governo.
A
uma semana das eleições presidenciais americanas e a duas das eleições
municipais, no 9.º mês de mortes e medo da pandemia, ainda fumegando a Amazônia e o Pantanal, o Brasil se consagra na mediocridade,
destemor e escárnio daquela cena trágica fotografada como cômica.
Num momento como este, foi o que sobrou. Desfecho de uma disputa de poder em que o presidente, mais uma vez, encerrou a conversa incômoda com afago ao time que lhe dá a cabeça ao cafuné. O grupo que Salles representa, ao qual, uma vez escolhido, serve seu corpo por encomenda à condução do conflito.
Este
é um dos três núcleos que gravitam em torno do presidente e disputam a condição
de serem o seu domicílio. Completam o círculo os militares e os políticos.
O
mais recente conflito entre eles colocou, de um lado, o ministro Salles e,
de outro, o general Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de
Governo). Os nomes não importam, são os grupos por trás deles que operam. Tem
explicação racional? Não. O que vai acontecer na sequência? Nada. Apenas
aguarda-se o próximo episódio. É a dinâmica do governo Bolsonaro.
Convencionou-se
caracterizá-los como alas, tributo ao país das escolas de samba. Denominação
que guarda distorções. Da ala dos amigos do peito, definida como ideológica,
não se conhece uma única ideia. Assim ficou porque se aglutinou, inicialmente,
por obra do guru da direita bolsonarista, o escatológico Olavo de Carvalho.
Sua
força, no entanto, vem do combustível principal, os laços de família do
presidente. Filhos, ex-mulheres, amigos de toda a vida, assessores
parlamentares de pelos menos quatro casas legislativas. Acrescidos, depois da
chegada ao poder, de ministros, parlamentares (sobretudo evangélicos),
manifestantes fanáticos, com destaque para as locomotivas desgovernadas das
redes sociais.
Este
é seu governo in pectore. Eles ganham sempre e, quando perdem, caem para cima,
geralmente premiados com cargos no exterior. Ou recolhem-se para um discreto
retiro de meia semana.
Bolsonaro
foi buscar na caserna a mão de obra para levar adiante o governo. Nem durante a
ditadura foi possível apreciar, como agora, a relação dos militares com os
cargos. Assumiram o poder de maneira voraz, conquistando uma cidadela após a
outra. Os dois núcleos se combatem desde o início, na disputa da preferência do
presidente.
Supõe-se
que no imaginário de Bolsonaro a presença dos militares lhe daria sustentação
incondicional, quem sabe lhe possibilitando até ir além. Para ele, poder é
poder, sem filigranas ou vãs filosofias. Fechado à realidade, não percebeu que
as Forças Armadas se
civilizaram. Muitos dos escolhidos tiveram vivência anterior intensiva na
política, como assessores parlamentares, estabelecendo um relacionamento
camarada com as lideranças no Congresso.
Foi
para preservar a política, resgatada para o governo depois de patinarem quase
dois anos, que os presidentes da Câmara e do Senado penderam, neste conflito,
para o grupo militar. O que pareceu, a princípio, um tiro de bazuca para
revidar uma puxada de estilingue, provou-se depois de intensidade excessiva,
mas necessária. Os amigos do peito não têm limites.
O
núcleo político começou a se consolidar com o Centrão, de reconhecido vazio moral e
intelectual. Mas não é só ele. Jair Bolsonaro está dependente da velha
política, em gênero, número e grau.
Até para dar a volta completa ao círculo e voltar ao ponto inicial, conquistando a meta de proteger os filhos. A doutrina do Centrão esconde a sentença não pronunciada: se é para salvar, salvemos todos, não apenas um senador membro da primeira-família.
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