Como
vamos ajudar as pessoas que foram impactadas de forma desigual pelo vírus?
Dez
meses após os primeiros registros da doença hoje conhecida como covid-19, a grande preocupação de
cientistas e de gestores de saúde pública mundo afora são os chamados “long-haulers”,
ou aqueles que ainda sofrem sintomas ou apresentam sequelas meses depois de
terem se “recuperado” do vírus. Artigos sobre as sequelas publicados nos
principais periódicos científicos do mundo abundam, relatos clínicos também. A
chamada “segunda onda” na Europa tem provocado grande alarme entre as
autoridades de vários países devido aos efeitos de um duplo impacto sobre o
sistema de saúde: o número de novos infectados que podem a vir a precisar de
hospitalização somado ao número de pessoas que desenvolvem sequelas e acabam
retornando aos hospitais.
Aqui
nos Estados Unidos não
é diferente, ainda que Trump siga negando a gravidade da
doença, mesmo depois de ter sido hospitalizado e de ter recebido tratamentos de
ponta que não estão disponíveis para o restante da população. O Brasil continua fechando os olhos
para o óbvio, com mais de 160 mil óbitos e muitas pessoas hospitalizadas em
razão das sequelas.
Tenho
escrito com frequência nesse espaço sobre as sequelas. Não é incomum que
infecções virais causem problemas diversos. Há vasta documentação de sequelas
em sobreviventes de Sars e Mers, duas doenças respiratórias mais letais do que
a covid-19 e também causadas por coronavírus. O próprio vírus da gripe pode
causar problemas pulmonares e neurológicos, entre outros. A diferença no caso
da covid-19 é que seu vírus causador, o Sars-CoV-2, pode provocar um enorme
desarranjo no sistema imunológico, levando a quadros que se assemelham ao de
doenças autoimunes. Tais pacientes não precisam necessariamente ter desenvolvido
uma manifestação grave ou severa da doença, já que há evidências do problema
também entre pacientes que apresentaram casos leves ou moderados de covid-19.
Entre
os diversos desafios que a pandemia trouxe, o mais recente e urgente, sobretudo
com o surgimento de novas ondas da epidemia, é identificar quantas pessoas já
sofrem de sequelas e quantas mais poderão vir a apresentar problemas. E há
problemas de todo tipo: respiratórios, renais, hematológicos, vasculares,
cardiológicos, neurológicos. Há pessoas que desenvolvem quadros de
hiperglicemia, hipertensão, disfunções da tiroide.
Com
a alta do número de infecções no mundo e sua provável elevação daqui a alguns
meses no Brasil – defasagens importam e o vírus não deixou de circular –, é
razoável supor que a quantidade de gente com sequelas haverá de aumentar. Isso
representa não apenas um risco de sobrecarga do sistema de saúde no curto
prazo, mas também um ônus considerável de longo prazo.
Governos
e gestores de política pública precisam se preparar desde já para esse legado
da pandemia, pois esses são elementos suficientes para vislumbrarmos desde já
que, mesmo em um futuro que ainda não conseguimos enxergar – aquele em que a
vida terá algum semblante do que antes considerávamos ser a normalidade –, os
sistemas de saúde não serão os mesmos, muitas pessoas não serão as mesmas, e as
economias haverão de refletir essa realidade. Não temos ainda um cálculo para o
custo econômico das sequelas, mas não é exagero dizer que ele provavelmente
será elevado.
No
caso do Brasil, como tenho escrito quase toda semana nesse espaço, um grande
desafio será o que fazer para dar ao SUS condições
de enfrentamento desse quadro. Já há relatos de hospitais públicos no país onde
leitos de UTI estão sendo ocupados por pessoas com sequelas. Esse é um problema
não só para a distribuição dos recursos médico-hospitalares do SUS, mas também
um enorme desafio para a economia.
Quantas
dessas pessoas as terão de forma permanente? Quantas ficarão impossibilitadas
de retornar ao mercado de trabalho? Quantas terão de receber algum tipo de
assistência do Estado para sobreviver? E os dependentes dessas pessoas, como
haverão de sobreviver? Já sabemos que a covid-19 aflige de forma
desproporcional pessoas de renda mais baixa, pessoas mais vulneráveis. Como
vamos ajudar essas pessoas, impactadas de forma desigual pelo vírus e pelo seu
legado?
Todas
essas perguntas aguardam respostas. Não apenas do governo federal, mas também
dos governos estaduais e, sobretudo, dos governos municipais. As eleições estão
aí. Onde estão as respostas?
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
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