Ao
negarem legado racista da escravidão, presidente e vice se revelam seus arautos
Na
quinta-feira 19, os brancos Giovane Gaspar da Silva, de 24 anos, policial
militar temporário e, segundo a Polícia Federal, sem registro nacional para
atuar como segurança, e Magno Braz Borges, ambos funcionários da Vector
Segurança, mataram o soldador negro João Alberto Silveira Freitas. O massacre
no estacionamento de uma loja do Carrefour em Porto Alegre provocou protestos a
partir do dia seguinte, feriado da Consciência Negra em vários municípios
brasileiros, incluindo São Paulo.
O presidente Jair Bolsonaro e seu vice, Hamilton Mourão, ambos da reserva do Exército, execraram esses protestos. “No Brasil não existe racismo”, pontificou o general. O capitão foi além ao comentar o fato, sem citar o nome da vítima, em suas redes sociais e em discurso em reunião virtual do G-20, afirmando que o Brasil é um país miscigenado e “foi a essência desse povo que conquistou a simpatia do mundo.” Disse ainda: “Contudo há quem queira destruí-la e colocar em seu lugar o conflito, o ressentimento, o ódio e a divisão entre raças, sempre mascarados de ‘luta por igualdade’ ou ‘justiça social’. Tudo em busca de poder”. E mais: “Aqueles que instigam o povo à discórdia, fabricando e promovendo conflitos, atentam não somente contra a Nação, mas contra nossa própria História. Quem prega isso está no lugar errado, seu lugar é no lixo”.
Aprendi
no curso primário do Grupo Escolar Jovelina Gomes, em Uiraúna (PB), que a
escravidão dos indígenas foi meio dominante de produção agrícola e extração
mineral na colônia, usado por colonizadores brancos desde a descoberta até o
século 18, quando o marquês de Pombal o extinguiu. Os bandeirantes paulistas,
grandes heróis da conquista dos territórios aquém da imensa costa, recorreram à
prática nos séculos 16 a 18: Fernão Dias e Raposo Tavares são cultuados em
nomes de escolas. O crudelíssimo Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera,
conhecido pela crueldade na captura dos nativos, é cultuado da mesma forma.
Proibidos
pela coroa portuguesa de escravizar índios, os brasileiros entraram num dos
capítulos mais infames da História da humanidade: o tráfico de escravos
importados da África. Em compensação, aqui existiu um dos movimentos políticos
de maior nobreza: o abolicionismo. Negros, como José do Patrocínio, e brancos,
como Joaquim Nabuco, edificaram o que de mais nobre o gênero humano produziu no
meio de tantos réprobos, como o mulato Chachá, riquíssimo mercador de escravos
nascido na Bahia e morador durante a maior parte de sua vida em Angola, onde se
aproveitava dos costumes das tribos locais para viver à tripa forra, como
descreveu com brilho o poeta Alberto da Costa e Silva.
Nas
noites de breu do sertão, ouvi na récita de cor de minha mãe, Mundica Ferreira
Pinto, os versos inspirados de outro baiano, Castro Alves, narrando o horror
desse comércio em seu poema antológico Navio Negreiro: “E existe um povo
que a bandeira empresta/ Pr'a cobrir tanta infâmia e cobardia!.../ E deixa-a
transformar-se nessa festa/ Em manto impuro de bacante fria!.../ Meu Deus! meu
Deus! mas que bandeira é esta,/ Que impudente na gávea tripudia?!/ ...Silêncio!...
Musa! chora, chora tanto/ Que o pavilhão se lave no teu pranto...// Auriverde
pendão de minha terra,/ Que a brisa do Brasil beija e balança,/ Estandarte que
a luz do sol encerra,/ E as promessas divinas da esperança.../ Tu, que da
liberdade após a guerra,/ Foste hasteado dos heróis na lança,/ Antes te
houvessem roto na batalha,/ Que servires a um povo de mortalha!...”. E Freitas
seria massacrado na data dedicada a essa bandeira.
Joaquim
Nabuco, vulgo Quincas, o Belo, político e diplomata abolicionista, marcaria sua
passagem como autor da obra-prima literária Um Estadista do Império e
condenou de forma implacável o modo irresponsável como a princesa regente
Isabel aboliu a escravatura. Os negros forros saíram de senzalas humilhantes
para o degredo do desemprego, da mendicância, da discriminação e da miséria
como regra. Isso, é claro, não impediu a genialidade de afrodescendentes, como
o maior dos escritores brasileiros, Machado de Assis, parceiro de Nabuco na
criação da Academia Brasileira de Letras, Lima Barreto e Cruz e Souza, entre
tantos outros. Também tinham origem na África tribal escravagista o engenheiro
André Rebouças e o maior esportista brasileiro de todos os tempos, simplesmente
Pelé.
Jair
Bolsonaro, descendente de colonos italianos, não tem autoridade política nem
pessoal para insultar, como o fez, brasileiros sensíveis que sabem que o legado
histórico da escravidão negra assombra a realidade brasileira ainda hoje. Nada,
portanto, o autoriza a considerar “lixo” o patrício que condene o abominável
massacre de Porto Alegre como resultado dele. Ao eliminar o nome da vítima de
sua manifestação execrável, ele deu força à expressão Homem Invisível, da lavra
do norte-americano Ralph Ellison, como a mais completa definição de racistas
que se escondem como “daltônicos”, entre os quais ele e seu vice-presidente,
orgulhosos da própria ignorância e executantes de uma política que ignora a
História para reproduzir suas infâmias.
*Jornalista,
poeta e escritor
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