Começo
da transição do governo Biden deixa claro que os surtos de anomalia aguda vêm e
vão
No
fim, as profecias mais pessimistas sobre “o fim da democracia americana”,
entoadas com ar de gravidade por diversos analistas nos EUA e no Brasil,
não se confirmou. E era mais do que esperado que não se confirmasse. Como
escrevi tanto neste espaço quanto em coluna para a revista Época, Donald J.
Trump gosta de quebrar porcelana, mas, quando se trata das
instituições deste país onde vivo há muitos anos, entre idas e vindas, tudo
funciona conforme se espera.
O Judiciário descartou praticamente todas as tentativas de Trump de subverter as eleições, muitas das quais risíveis. Cenas absurdas marcaram as semanas que transcorreram desde 3 novembro, e a elas voltarei em um instante. Além do Judiciário, as legislaturas estaduais, os responsáveis pela certificação das eleições, entre outros, não se deixaram abalar pelas investidas do ainda presidente, que já havia desistido de governar para se entregar a tentativas esdrúxulas de invalidar as eleições e a rodadas de golfe nos fins de semana. Prevaleceu o que prevaleceria: a vitória do presidente eleito, o democrata Joe Biden.
Para
falar sobre a transição de Biden, é preciso discorrer sobre os absurdos que
testemunhamos desde a coletiva no estacionamento da hoje famosa Four Seasons
Total Landscaping. Para quem não se lembra do episódio, ele aconteceu no dia em
que Biden foi declarado vencedor pelos principais veículos de notícias. Nesse
dia, Rudy Giuliani, advogado de Trump, convocou a imprensa para
falar sobre a estratégia jurídica da campanha. Desafortunadamente para ele –
para muitos foi uma delícia –, alguém da equipe apontou e acertou no Four
Seasons errado. Por força do erro, a entrevista se deu não no sofisticado
hotel, mas em um dilapidado estacionamento que fica entre o crematório e a
“Ilha da Fantasia”, nome do sex shop ao lado. A Four Seasons Total Landscaping
desde então faz sucesso com a venda de camisetas e máscaras protetoras com
dizeres variados.
O
segundo episódio dentre aqueles absurdos se deu na semana passada, quando um
Giuliani de aparência desarranjada suava em frente às câmeras, a tinta do
cabelo escorrendo pelas bochechas. A imagem foi menos lúdica do que a do famoso
estacionamento, mas, no conjunto, os dois episódios ilustram bem por que o ar
grave no trato do resultado das eleições e as sentenças de morte da democracia
eram descabidos. O que havia era não um ato ominoso, mas uma chanchada, algo
burlesco.
Na
segunda-feira, a agência responsável liberou os recursos federais e deu
permissão para que a transição se inicie. Mas Biden não está perdendo tempo.
Antes mesmo de ser “oficializada” a troca de comando, já tinha se reunido com
aqueles que pretendia indicar para os cargos mais importantes. Em pouco mais de
um par de dias, anunciou quem seriam os principais assessores da Casa Branca, quem ocuparia a chefia do Departamento de Estado,
do Tesouro, da Segurança Nacional, entre outros. Para o Departamento de Estado,
escolheu Antony Blinken, diplomata de carreira, tarimbado e experiente tanto em
assuntos externos quanto em temas de segurança nacional. O presidente eleito
sinaliza, assim, que seu governo retomará as rédeas do multilateralismo achincalhado
por Trump e por adeptos da tese do globalismo malvado mundo afora. Tal grupo
inclui vários membros de alto escalão do governo Bolsonaro, gurus de seus
filhos, além de seus filhos.
Para
o Tesouro, Biden chamou Janet Yellen.
Yellen foi a primeira mulher a presidir o Fed, durante o governo Obama.
Agora ela será a primeira mulher a chefiar o Tesouro. Tive o prazer de
conhecê-la e estar com ela em várias ocasiões aqui em Washington,
tanto em palestras no Peterson Institute for International Economics, onde
trabalho, quanto em ocasiões mais prosaicas. Yellen era frequentadora assídua
de uma cafeteria onde eu costumava almoçar antes da pandemia. Sempre em
companhia ilustre, a economista nunca deixou de me cumprimentar. Yellen reúne
qualidades únicas: é uma acadêmica de peso, além de uma grande gestora de
política econômica. Sua visão sobre os males que afligem os EUA passa por um
entendimento sofisticado e abrangente das mazelas estruturais responsáveis pela
desigualdade no país. É de alguém como ela que precisamos na futura liderança do Ministério da Economia.
A
transição de Biden, ainda que a pandemia esteja se agravando por aqui, tem
deixado claro algo que precisa ser internalizado também no Brasil.
Os surtos de anomalia aguda, os gravíssimos acidentes históricos representados
pela ascensão de Trump e de Bolsonaro,
são parte da história. Vêm e vão. O Brasil não está destinado a perecer nas
mãos da incompetência, assim como não o estavam os EUA. Tudo muda. Tudo está
sempre em transição.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
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