A
lógica do governo sabota as suas próprias políticas
Num
dos episódios do ótimo podcast produzido pela Revista Piauí, “Retrato Narrado”,
sobre a vida de Jair Bolsonaro, um dos amigos de juventude do atual presidente
da República revela a forma como era conhecido quando garoto pelos amigos do
Vale do Ribeira: invertido. O apelido se devia ao peculiar raciocínio do jovem
Jair, na percepção dos conterrâneos.
Pode-se
dizer que essa lógica invertida o acompanhou ao longo da vida e, sem dúvida,
caracteriza seu governo. E, se há uma área em que tal inversão se revela de
forma cabal, é a política de saúde, ao lidar com a Covid-19.
Preocupado com os efeitos da doença sobre a economia, o presidente instou os brasileiros a não esmorecer, como fariam “maricas”. Em vez disso, conclamou todos a enfrentarem de peito aberto a “gripezinha”, continuando a trabalhar e sair de casa normalmente. Para dar o exemplo, compareceu a diversas aglomerações sem usar máscara - para ele, coisa de “viado”, embora não tenha se constrangido de, vez ou outra, usá-la em público.
Fazendo
jus à simpatia pela ditadura militar, tentou concentrar em suas mãos todas as
decisões referentes às medidas sanitárias, passando por cima dos governos
subnacionais. Contrariado pelo Supremo Tribunal Federal, que apontou terem
estados e municípios competências próprias na seara, decidiu lavar as mãos (não
no sentido sanitário, mas no de Pilatos) e disse que, de acordo com o STF, não
era sua a responsabilidade por combater a pandemia, mas de governadores e
prefeitos.
Empolgou-se
com alguns medicamentos para o combate à doença: cloroquina, ivermectina,
azitromicina e nitazoxanida. Diante da alegação de que não haveria evidências
de sua eficácia, retorquiu que também faltariam evidências de sua ineficácia;
sobre os efeitos adversos, preferiu se calar. Curiosamente, a mesma cautela que
falta com relação a medicamentos não recomendados por estudos clínicos e pelas
autoridades sanitárias, sobra com respeito às vacinas que vêm, há meses, sendo
cuidadosamente desenvolvidas por diversos grupos de pesquisadores mundo afora.
A
aversão aos imunizantes é tamanha que Bolsonaro defende valer mais a pena
investir na cura (com remédios), do que na prevenção (com vacinas). Mais do que
isso, advoga enfaticamente que vacinação não pode ser obrigatória, exceto para
animais, como cães. Coerente com tal convicção, celebrou a morte de um
voluntário dos testes da vacina “chinesa” do Instituto Butantã como uma vitória
sua, pois levou a Anvisa a interromper os experimentos - apesar de se tratar de
um episódio de suicídio, sem qualquer relação com o medicamento.
Desinteressado
de dar curso a uma campanha de imunização, o governo não buscou se abastecer de
seringas e outros materiais necessários à vacinação. Como o ministro da Saúde,
general Eduardo Pazuello, chegou ao cargo com a fama de especialista em logística
do Exército, não seria o caso de imaginar que tal situação se devesse a
incompetência na gestão de estoques.
Se
bem que, considerando que o mesmo ministro foi incapaz de distribuir testes de
Covid-19 para governos subnacionais, talvez a hipótese da inépcia não deva ser
descartada. Ou ainda, é possível que se trate da combinação de duas coisas:
para um presidente que deseja sabotar medidas sanitárias, nada melhor do que
ter à frente da Saúde um general servil e incompetente: os dois atributos se
reforçam mutuamente num governo de invertidos.
Note-se,
aliás, que com tantas demonstrações de coerência, não se pode considerar a
lógica invertida que guia o governo como sinônimo de falta de coerência - ao
menos com suas próprias ideias equivocadas.
Outra
evidência disso é, diante da inevitabilidade de uma campanha de vacinação, o
conjunto de iniciativas visando inibir a cobertura vacinal. A proposta
governista de que aqueles que se vacinarem tenham de firmar um termo de
consentimento informado, ou de responsabilidade, isentando o governo de
qualquer culpa no caso de eventuais efeitos adversos, é um exemplo claro de tal
tipo de invectiva. Ou, no palavrório mais próprio ao presidente: “Tem gente que
quer tomar [a vacina], então toma, a responsabilidade é tua. Se der algum
problema aí, espero que não dê”.
A
justificativa do general Pazuello para exigir o termo de consentimento é
logicamente curiosa. Ele chama a os cidadãos a serem vacinados de
“voluntários”, como se participassem de uma experiência científica. Essa
confusão decorre de outra: o ministro trata a vacinação com o uso de
imunizantes autorizados emergencialmente como não sendo uma campanha de
vacinação, mas um experimento - isso, em meio a uma pandemia.
Ora,
mas para quê autorizar emergencialmente uma vacina, senão para promover uma
campanha de vacinação? Não faz sentido aprovar qualquer medicamento
emergencialmente, senão para combater alguma doença. A autorização para testes
clínicos é diferente da autorização emergencial para uso. O governo não vê a pandemia
como uma emergência sanitária, ainda que admita, a contragosto, a aprovação
emergencial de vacinas. Logo, se não há emergência, não é preciso fazer
campanha de vacinação. Portanto, o governo sinaliza aos cidadãos que eles serão
cobaias de um experimento e, por isso, devem consentir em participar. Eis a
lógica invertida que orienta Bolsonaro e seus ministros - generais ou não.
O
presidente da Câmara, Rodrigo Maia, já advertiu que essa proposta de termo de
consentimento não deverá prosperar na apreciação da Medida Provisória da
Vacina, ao menos no que depender dele. Por isso mesmo, desautorizou a posição
inicialmente adotada por seu colega de partido, o deputado Geninho Zuliani
(DEM-SP), relator da MP, que havia se mostrado bastante cordato com essa medida
de sabotagem à vacinação. Novamente, os despautérios do Executivo precisarão
ser corrigidos pelo Congresso, pelo STF e pelos governos subnacionais - como já
o foram noutros momentos. Os freios e contrapesos da democracia mostram para
quê servem.
*Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP
Nenhum comentário:
Postar um comentário