Expurgada
das siglas, discussão tributária pode ser fascinante, além de essencial
Talvez
não seja o caso de convidar Thomas Piketty,
herói da esquerda mundial desde que publicou o livro O Capital no
Século XXI, e Paulo Guedes, ministro da
Economia do governo Bolsonaro, para a mesma mesa de bar. Se a mesa for de
debates é outra coisa. Em 2014, os dois participaram de um evento na
Universidade de São Paulo. Piketty viera ao Brasil lançar o livro que o tornou
famoso. Paulo Guedes nem sonhava (pensando bem, sonhava sim) em ser ministro da
Economia.
Em
um momento do debate, Piketty, naquele inglês charmoso (e às vezes
incompreensível) de que só os franceses são capazes, defendeu apaixonadamente a
cobrança de um imposto sobre
heranças. Em sua vez de falar, Paulo Guedes endossou a tese. O
esquerdista e o liberal concordaram mais que discordaram, surpreendendo a
plateia.
Lembrei-me do episódio neste momento em que o Brasil discute orçamento e uma reforma tributária. A conversa exclui a maior parte dos cidadãos por causa da linguagem excessivamente técnica, um emaranhado de números e siglas. O debate poderia ser mais inclusivo se os contendores, sem abrir mão da complexidade dos temas, dessem nomes aos bois (o economista Bernard Appy, colunista do Estadão e ex-integrante do governo Lula, é uma exceção por sua clareza. Ele é o personagem do minipodcast da semana).
Os
cidadãos de um país entregam parte de seu dinheiro aos governos – o nome disso
é imposto. Os políticos decidem onde o dinheiro será utilizado – isso se chama
orçamento. Tais políticos são escolhidos pelos cidadãos, de forma a agir de
acordo com o pensamento da sociedade – a isso se chama democracia.
Como o dinheiro dos cidadãos não cobre todas as despesas, é necessário fazer escolhas – isso se chama conflito distributivo. Os cidadãos preferem que seu dinheiro seja investido em hospitais ou na JBS de Joesley Batista? Gostariam que os recursos financiassem escolas ou aposentadorias de juízes e desembargadores?
No
Brasil, seria pedagógico se esses conflitos ficassem mais claros para todos. Em
Portugal, onde moro, os debates sobre orçamento e tributos são assunto
recorrente nos telejornais. A isso se chama cidadania.
Se
falta dinheiro, seria o caso de cobrar mais dos cidadãos? Se sim, todos
concordam – e aí entra a conversa entre Piketty e Paulo Guedes – que os ricos
devem pagar mais. Quanto dinheiro, no entanto, seria possível gerar com
impostos sobre heranças ou dividendos? No Brasil, tem-se como certo que tal
valor resolveria todos os problemas. Falta aquilo que se chama matemática – um
ponto fraco em nosso debate público.
Expurgada
das siglas, a discussão tributária pode ser fascinante, além de essencial. Se
Piketty e Paulo Guedes conseguem conversar sobre o assunto, por que não nós?
Estive algumas vezes com Paulo Guedes como jornalista. Anos depois do debate na
USP, entrevistei Piketty no palco, no âmbito do projeto “Fronteiras do
Pensamento” – e a conversa, ótima, evoluiu para um jantar com seus editores
brasileiros.
A impressão que guardo dos dois: Guedes e Piketty adoram debater com quem pensa diferente (mesmo que alguns no governo chamem impropriamente de “detratores” os que discordam, legitimamente, do ministro da Economia). Na falta do debate inteligente, os fracos de argumentação preferem se recolher em bolhas, esquerdas de um lado, direitas do outro. A isso se chama obtusidade – termo difícil de conciliar, na mesma frase, com a palavra democracia.
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