Organizações
civis crescem e se fortalecem sob um governo que quer sufocá-las
Enquanto
nosso criptogoverno vai afundando as botas num pântano de obscurantismo,
incompetência e hostilidade a padrões mínimos de moralidade, com impacto devastador
sobre a vida dos brasileiros e a saúde da própria democracia, a sociedade civil
vem recompondo laços esgarçados pela forte polarização política e o estresse
institucional em que imergimos a partir de 2013.
Em
1835, Alexis de Tocqueville expressou seu entusiasmo com o papel das
“associações civis”, formadas voluntariamente por cidadãos, no florescimento e
na sobrevivência da democracia na América. Além de favorecer a solução de
problemas concretos da comunidade pela ação coletiva de seus membros, o
associativismo contribuiria, por meio “da influência reciproca que uns
exerceriam sobre os outros”, para a formação de cidadãos melhores, com ideias
“renovadas, corações ampliados e mentes desenvolvidas”.
Desde
cedo, portanto, o conceito de sociedade civil adquiriu um sentido positivo,
ligado à promoção da liberdade, do pluralismo e da justiça social, não devendo
ser confundindo com associações (in)civis, formadas com o propósito de suprimir
direitos ou fragilizar a democracia, como a Ku Klux Klan, os Camisas Negras, ou
as milícias
digitais contemporâneas.
Foi essa sociedade civil, como vetor democrático, que desempenhou um papel central na debacle dos regimes autoritários na América Latina, no Leste Europeu e na África do Sul, no final dos anos 1980. Não deve causar qualquer surpresa, portanto, os ataques que os novos populistas autoritários têm lançado sobre as organizações autônomas que lhes ousem criticar, contestar ou controlar.
A
promessa do presidente brasileiro de acabar com toda a forma de ativismo
parece, no entanto, estar gerando o efeito inverso. Centenas de novas
iniciativas e coalizões no campo da defesa da democracia, do meio ambiente, da
luta antirracista e do litígio estratégico surgiram nestes dois anos.
Por
outro lado, a condução criminosa da pandemia fez com que vetustas organizações
como a Ordem dos Advogados do Brasil, a Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil, a Associação Brasileira de Imprensa, a Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência, a Academia Brasileira de Ciências e a Comissão Arns de
Direitos Humanos, que há muito não se conversavam, retornassem à mesa para
lançar o Pacto pela Vida, em abril de 2020.
No
próximo dia 10 de dezembro, data em que a Declaração Universal dos Direitos
Humanos completa 72 anos, essas mesmas organizações irão centrar atenção sobre
as questões da desigualdade, da democracia e do direito à vida.
Também
temos testemunhado uma revolução de veludo no campo da luta antirracista.
O assassinato
brutal de Beto Freitas tem catalisado, em torno do movimento
negro, uma convergência entre organizações e movimentos com missões muito
distintas entre si. Exemplo dessa convergência é a ação de diversas lideranças
civis e religiosas para a formação de uma aliança contra o racismo. Pastores,
rabinos, babas, mães e pais de santo, bispos, padres e líderes de outras
denominações querem deixar claro, por meio de atos inter-religiosos, que “quem
tem fé preza a vida”.
Como
poeticamente lembra o escritor uruguaio Mario Benedetti, a democracia é uma
obra sempre inacabada, que exige andaimes para que possa ser constantemente
reparada. As organizações da sociedade civil brasileira vêm, mais uma vez, se
colocar como esteios de nossa tão maltratada democracia.
*Oscar Vilhena Vieira, professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
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